Estudo avalia traumas psicológicos decorrentes da Covid-19
Saúde mental do brasileiro pode ser afetada pela insegurança em relação ao futuro, crise financeira e possibilidade de perda do emprego
Análise e estudo sobre a pandemia de coronavírus expandem-se após um ano de restrições que a doença trouxe para boa parte do mundo. Os diagnósticos são amplos e investem em examinar os inúmeros aspectos que a epidemia trouxe, em particular, no Brasil.
A psiquiatra da Clínica Harmonize e professora do Departamento de Medicina da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Juliana de Almeida Prado, produziu um conteúdo analítico para o canal Informe SUS da UFSCar, no qual traça aspectos da saúde metal da população.
De acordo com o texto produzido pela médica, a pandemia do novo coronavírus é a maior emergência de saúde pública que a comunidade internacional enfrenta em décadas. Além das preocupações quanto à saúde física, traz grandes preocupações quanto ao sofrimento psicológico vivido pela população geral e pelos profissionais da saúde envolvidos.
Segundo Juliana, esta pandemia apresentou uma série de características que são únicas e inéditas e nenhuma outra teve um alcance global nas proporções da Covid-19. “Ela impactou de forma dramática diversos aspectos de nossa sociedade e nos desperta insegurança em relação ao futuro: crise financeira, a possibilidade de perda do emprego, a necessidade de mudanças nos nossos hábitos, comportamentos, valores”, traz o texto.
A psiquiatra ainda pontua que a crise ocorre em um momento histórico em que a informação é disseminada de uma maneira e numa intensidade jamais vistas, podendo ser comparada a uma avalanche com conteúdo diverso, notícias falsas, boletins diários de mortalidade e novos casos, promessas terapêuticas, antecipação de crises e recessão futura, entre tantas outras.
A análise pontua que a covid-19 tem, portanto, um alto potencial para gerar nas pessoas sofrimento psicológico. Embora a grande maioria da população mundial não tenha sido infectada pelo vírus, a perspectiva de deixar o antigo estilo de vida para trás e a exposição a este modelo de divulgação das informações mobilizam uma série de reações de estresse, medo e ansiedade.
“Tecnicamente, os transtornos relacionados ao trauma só podem ser corretamente identificados depois de 30 dias da exposição ao evento traumático. Antes desse período, as reações de estresse são perfeitamente normais e, inclusive, necessárias para que nosso corpo entre novamente em equilíbrio”.
A psiquiatra explicou que o enfrentamento de uma experiência muito ameaçadora requer um enorme gasto de energia de todo o nosso organismo. “Há uma grande interação entre mente e corpo e as reações ocorrem em cascata no corpo todo, para nos preparar para o enfrentamento da ameaça”.
Em sua análise, o Brasil é um país muito desigual e, infelizmente, grande parte da sua população vive em situação de vulnerabilidade rotineiramente. Esse contato mais rotineiro com os desafios e ameaças pode ter alguns desfechos. A pessoa pode conseguir se reorganizar, aprender a enfrentar os desafios e a se proteger melhor e a se tornar mais resistente ou resiliente.
“Por outro lado, a exposição crônica pode esgotar os recursos e habilidades de enfrentamento, de modo que a pessoa se torna vulnerável ao adoecimento. É importante aqui apontar que o principal fator de proteção ao adoecimento em situações de ameaça é o suporte social”, relatou.
Juliana registra que de um modo geral, as pessoas resilientes às experiências de ameaça têm uma rede de suporte social melhor estruturada. E aquelas que adoecem, são as que estão mais desamparadas. “Há uma somatória de recursos individuais da pessoa, mas que são completamente dependentes da rede de apoio que a pessoa tem para conseguir se reestruturar”, explicou ao relatar que esse apoio pode vir da família, do trabalho, da escola, da comunidade, das comunidades religiosas, do Estado, entre outros.
Na análise da médica, a pandemia da Covid-19 é uma experiência muito impactante sobre a vida das pessoas e da sociedade como um todo. Em primeiro lugar, ela surgiu e evoluiu de maneira muito rápida, as pessoas foram pegas de surpresa e tiveram suas vidas mudadas drasticamente.
Vulnerabilidade
O ineditismo da doença traz a insegurança emocional
De início, muito pouco se sabia sobre a doença, e o sentimento de medo e ameaça eram predominantes. As perdas de familiares e de pessoas queridas, a impossibilidade dos ritos de despedida desses mortos. “Muitos tiveram suas fontes de subsistência afetada e, no Brasil, a grande maioria da população não tem reserva financeira. O Estado ofereceu muito pouco suporte social a sua população”, afirmou a psiquiatra e professora do Departamento de Medicina da UFSCar, Juliana de Almeida Prado.
Neste sentido, todas essas perspectivas podem despertar nas pessoas sentimentos de medo, insegurança, vulnerabilidade, desamparo. “Quando nos percebemos ameaçados, o nosso sistema nervoso lança mão de uma série de reações neurofisiológicas de estresse para preparar nosso corpo para se proteger. É quando sentimos tensão nos músculos, coração acelerado, dificuldade de relaxar e dormir, ficamos muito alertas e amedrontados”.
Juliana explicou que paralelamente à ocorrência dessas reações fisiológicas, o nosso cérebro precisa “processar” a experiência de ameaça e vulnerabilidade. É como se fosse um processo de digestão da experiência. Quando a experiência é processada com sucesso, o corpo consegue desativar as reações de estresse depois que a ameaça não estiver mais presente. “Pelo contrário, se o cérebro não consegue processar a experiência, as reações de estresse se perpetuam, e o corpo passa a reagir como se a ameaça estivesse sempre presente, dando origem ao trauma psicológico”.
A médica indicou ainda que a pandemia da Covid-19 tem se mostrado uma experiência com alto potencial para desencadear reações traumáticas. Basta observar em nossa sociedade o estado aumentado medo, alerta, insegurança, tensão, mal-estares físicos relacionados ao estresse. “É lógico que precisamos considerar que a pandemia ainda é uma ameaça real, infelizmente. Mas justamente pela sua longa permanência na nossa sociedade e pelo acúmulo de consequências e prejuízos, que o trauma é mais provável. As pessoas vão esgotando os seus recursos de enfrentamento das dificuldades, vão se tornando vulneráveis ainda mais e se tornam mais susceptíveis ao trauma”.
“As pessoas têm convivido em estado cada vez maior de insegurança e de estar sob ameaça o tempo todo. Comportamentos de medo, flutuações repentinas de humor, cansaço, esgotamento mental e insônia também são muito frequentes”.
ENFRENTAMENTO – Do ponto de vista prático, contar com apoio psicossocial na comunidade para o enfrentamento da crise e manter uma boa rotina de descanso, sono e higiene mental são importantes para a regulação biológica e ativação dos fatores que promovem a resiliência às vivências adversas.
Um grupo populacional bastante exposto ao cenário da Covid 19 são os profissionais de saúde. Submetidos meses a fio a condições de trabalho de grande estresse físico e mental, o que facilita o esgotamento dos recursos fisiológicos de manutenção do equilíbrio interno. Por exemplo, a rotina pesada, a tensão persistente, o medo de contaminarem seus familiares e a falta de sono, estimulam a ativação constante do sistema nervoso autônomo simpático (SNS) e a consequente liberação de hormônios do estresse.