‘Vamos deixar de bobagem e vacinar’, diz chefe da Anvisa
Desde o início da pandemia, a Anvisa autorizou mais de cem estudos clínicos de medicamentos e vacinas contra a covid-19
O contra-almirante e médico Antônio Barra Torres, de 57 anos, chegou ao cargo de diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por indicação do presidente Jair Bolsonaro. Em dezembro de 2019, alguns dias antes dos primeiros registros de covid-19 em Wuhan, na China, assumiu interinamente o cargo, do qual viraria titular no ano seguinte.
Alguns meses depois, participou, ao lado do presidente, de um ato público em Brasília sem máscara. Críticos temeram que, pela proximidade entre os dois, a agência tivesse uma gestão mais política do que técnica. Aos poucos, porém, ele descolou sua imagem da de Bolsonaro, assumindo o discurso de defesa da ciência.
Desde o início da pandemia, a Anvisa autorizou mais de cem estudos clínicos de medicamentos e vacinas contra a covid-19 e teve papel importante no enfrentamento da pandemia no País. Em entrevista ao Estadão, Barra Torres defende com ênfase as vacinas contra a covid-19, prega o uso de máscaras e pede à população que evite aglomerações desnecessárias – posturas bem diferentes das adotadas por Bolsonaro. “Vejo com reserva essa flexibilização, principalmente de eventos de massa.”
Ele também condena o discurso negacionista e as notícias falsas. “Estamos vivendo a maior pandemia de todos os tempos. Vamos deixar de bobagem e vamos vacinar.” A seguir, os principais trechos da entrevista.
A OMS recomendou que a eventual dose de reforço da vacina seja aplicada só depois que todo mundo tiver recebido as duas doses. Alguns países ricos, porém, já estão aplicando dose de reforço. Como vê essa situação? Essa dose é de fato necessária? Ou só para algumas vacinas?
Há estudos em andamento para aferir a necessidade da dose de reforço. A questão toda é que temos um cenário totalmente novo, que demanda constantes ajustes e reajustes. A toda hora, a própria pesquisa científica tem de se repensar. A Organização Mundial da Saúde fez o papel dela, que é defender a maior amplitude vacinal possível. Não pode haver ansiedade. Tudo o que envolve a pandemia é um processo dinâmico e pode mudar. Pode haver necessidade de terceira dose? Pode. Os estudos estão encomendados e em breve começaremos a ter respostas.
Se temos um dinamismo inédito das pesquisas científicas, temos também uma enxurrada de fake news. Como vê isso?
É uma questão difícil. O advento da internet e das mídias sociais é muito positivo, mas permite produzir confusão. A Anvisa tem, pelo seu portal, que ainda é pesado, a preocupação de ter janelas de informação ao cidadão não iniciado no assunto regulatório. Nosso painel de vacinas é atualizado todos os dias. A Anvisa é a primeira colocada no ranking da transparência e do combate às fake news entre os órgãos de Estado e governo. E quando a imprensa nos procura tentamos sempre esclarecer a questão das fake news, um inimigo desnecessário, que só soma um problema a uma situação que já é difícil.
A UFMG encaminhou à Anvisa o pedido de autorização para testes clínicos em humanos com a vacina lá desenvolvida. A UFRJ anunciou a submissão da documentação. O Butantan já está em fase de testes clínicos. Ainda este ano teremos uma vacina 100% nacional?
Acredito que sim, difícil dizer se será até o fim deste ano. Estamos em agosto, até o fim do ano acho difícil dizer que alguma vacina esteja pronta. Mas acredito piamente que vai acontecer, talvez entrando para o ano que vem.
E sobre as vacinas internacionais? Em julho, a Anvisa suspendeu a autorização temporária para a Covaxin… algo a ver com as investigações da CPI?
A questão vacinal está resolvida. Algumas vacinas têm registro definitivo, outras foram autorizadas para uso emergencial. A Sputnik V e a Covaxin tiveram autorização temporária para importação com condicionantes, por causa da carência de informações apresentadas.
A autorização da Covaxin foi suspensa porque ela está sem representante no Brasil. O representante registrado era a Precisa, mas houve um descredenciamento. De resto, não temos nada na fila no momento.
A variante Delta, considerada mais contagiosa, já representa 23% dos casos de covid em São Paulo e 45% no Rio. O que a Anvisa está fazendo para impedir sua disseminação no País?
Temos atribuições bem específicas de vigilância sanitária de fronteira. Quando se fala em barreira sanitária, vem logo à mente a imagem de um obstáculo, um muro. Não é isso. É um conjunto de procedimentos, processos, atividades. Nenhum país é uma ilha. Estamos sem cruzeiros marítimos há algum tempo, mas é os gêneros alimentícios? Os insumos medicamentosos? Pelos dados do Ministério da Saúde, temos hoje no País 2% de casos de Delta. E as medidas estão em constante análise e podem ser revistas. A Delta e também a Lambda (outra variante, identificada originalmente no Peru) estão no nosso radar. Tivemos até pedidos de fechamento do espaço aéreo do País, o que é totalmente irrazoável. Não posso passar cadeado e dizer “ninguém mais pisa aqui”.
A situação da covid no País melhorou enormemente, mas a situação ainda é ruim e muitos governadores anunciam a abertura total. Como vê essa decisão?
Vejo essa questão com cautela e preocupação. Lógico que os impactos na economia são brutais. Quem tem salário pede comida no aplicativo. Mas quem precisa comprar seu sustento tem dificuldade maior. Ainda assim, vejo com reserva essa flexibilização, principalmente de eventos de massa.