Brasil chega à cúpula do Brics na Rússia sob desconfiança do Ocidente
O Brasil participa sob olhar desconfiado de parceiros no Ocidente, como EUA e Europa
Reportagem – Estadão Conteúdo
Começa na terça-feira, 22, na Rússia, a cúpula do Brics, a primeira com a nova composição do bloco, que foi ampliado no ano passado, com a inclusão de mais cinco países. O Brasil participa sob olhar desconfiado de parceiros no Ocidente, como EUA e Europa, preocupados com gestos pró-Kremlin. A reunião é promovida por Vladimir Putin e usada por ele para demonstrar força e contestar seu isolamento global.
Por recomendação médica, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, cancelou de última hora a viagem até a Rússia, após sofrer uma queda no Palácio da Alvorada. Lula teve um trauma e um corte na cabeça. Ele deve participar por videoconferência. Sua ausência direta pode evitar possíveis tensões com os EUA – o chanceler, Mauro Vieira, lidera a comitiva brasileira.
A Ucrânia monitorava a viagem de Lula e estava incomodada com o fato de o Brasil ter ignorado pedidos para que ele também visitasse Kiev e ouvisse as demandas do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski. Mesmo dentro do governo brasileiro havia receio de que gestos considerados favoráveis aos russos pudessem provocar retaliações ocidentais e afetar o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia.
Altos funcionários de governos europeus, ouvidos sob condição de anonimato, veem a participação do Brasil como expressão do histórico não alinhamento da política externa brasileira, que busca representar o Sul Global e extrair concessões de Washington e Pequim.
Adesões
O Brasil, no entanto, ficou mais isolado no bloco desde sua expansão. A expectativa é que russos e chineses tentem se projetar como líderes do Sul Global e utilizar disso para pressionar os aliados por um novo sistema econômico que os afaste dos EUA.
A novidade da cúpula será a participação, além dos membros originais (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul), de Egito, Irã, Emirados Árabes, Etiópia e Arábia Saudita – o único país dos cinco que entraram que ainda não respondeu ao convite de adesão. A Rússia convidou também outros 30 países e organizações como observadores.
A cúpula ocorre em um contexto de sanções e do cerco a Putin, alvo de um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI), por crimes de guerra. Em reunião a portas fechadas com jornalistas que viajaram à Rússia, na semana passada, ele negou que o encontro tenha um caráter “antiocidental”, mas tentou colocar o Brics como “uma alternativa ao Ocidente”.
Seu ministro das Finanças, Anton Siluanov, disse que Moscou defenderá com mais força a desdolarização da economia global e um novo sistema financeiro internacional. Após a invasão da Ucrânia, a Rússia foi banida do sistema financeiro de transações internacionais (Swift), o que afeta as transações com bancos do país. O tema também é de interesse da China, que vive uma disputa com os EUA e prefere fazer comércio com sua própria moeda, em vez do dólar.
Interesses
“Esses não são temas novos. O presidente anterior da China, Hu Jintao, já dava sinais de que isso interessava a Pequim, na época da crise de 2008”, disse Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da FGV. “Mas eles são temas que se tornaram mais urgentes nos últimos anos.”
Se Rússia e China tentam antagonizar o Ocidente, Brasil e Índia evitam transformar o Brics em uma coalizão antiocidental. No entanto, com a expansão do bloco e a inclusão de autocracias mais próximas de Moscou e Pequim, esse equilíbrio se dilui.
“A dinâmica do bloco está em transição”, afirma Pedro Brites, professor da FGV. “Em termos relativos, o Brasil perdeu seu poder com a entrada de novos membros e a oportunidade de incluir um país latino-americano” – a Argentina chegou a ser convidada, mas o presidente Javier Milei recusou.
“O Brasil acabou ficando isolado, tanto em termos geopolíticos quanto no próprio alcance da sua política externa”, afirma Casarões. “Ela nunca foi dominante por razões óbvias. Mas uma coisa é não ser dominante e conseguir construir equilíbrio quando eram cinco membros, outra coisa é agora com dez.”
Liderança
Para Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global, do Quincy Institute, professor da Universidade George Washington, nem China nem Rússia deveriam falar pelas nações emergentes. “Sul Global é Brasil, Índia, África do Sul, e assim por diante. Suas perspectivas estão longe de serem as mesmas de China e Rússia”, disse. Não à toa, a diplomacia chinesa foi habilidosa em fazer de suas pautas os debates centrais das últimas cúpulas do Brics, incluindo a escolha dos novos membros. Este também será um dos pontos de atrito da cúpula.
Venezuela
Se antes havia divergências consideráveis entre os cinco membros, o dobro de participantes, de formatações econômicas e políticas tão distintas, pode dificultar ainda mais os consensos “Será importante observar se os países conseguem avançar em resultados efetivos após a ampliação”, disse Brites. “O importante será ver que tipo de aporte os novos membros trarão para as discussões.”
O que deve avançar, segundo Brites e Shidore, são as discussões sobre os critérios para adesão de novos membros e a sugestão russa de incluir parceiros observadores. Novamente, a China tende a sair ganhando e o Brasil, perdendo.
“A grande expectativa da cúpula é com o processo de adesão. Se passaram dez meses desde a entrada de novos membros e se espera que a expansão continue e se defina quais serão os critérios futuros”, afirmou Shidore.
“Se o Brics continuar se expandindo de acordo com os interesses da China, a chance de o Brasil sobrar como um dos pouquíssimos membros democráticos é muito grande”, disse Casarões. “Os critérios de expansão poderão ser mais ou menos objetivos, mas dificilmente tornarão o Brasil mais influente no médio prazo dentro do bloco. E ainda pode acontecer o efeito contrário.”
O grande risco, de acordo Casarões, é que, em uma futura expansão do Brics, o próximo país latino-americano a aderir seja a Venezuela, o que deixaria o Brasil em uma saia ainda mais justa China, Irã e Rússia veem com simpatia a entrada de Caracas no bloco. Lula, no entanto, já sinalizou a interlocutores e assessores que vetaria a manobra.