Crise revela falhas na gestão de Peluso à frente do STF
A guerra deflagrada entre associações de juízes e a corregedoria do Conselho Nacional de Justiça revela o quanto o Judiciário brasileiro está dividido sobre o papel a ser desempenhado pelo CNJ. O conflito reforça a ideia, corrente na imprensa e na opinião pública, de que o poder é tomado pelo corporativismo e refratário a qualquer controle.
Esta coluna falou com dois juízes, um estadual e um federal, ambos de fora de São Paulo, epicentro da atual crise, e ambos ex-dirigentes de associações de magistrados. A conversa indicou que, de fato, há visões opostas sobre a amplitude do poder de investigação do CNJ.
Mas a divisão poderia ser reduzida e só tem se agravado pelo que alguns juízes consideram uma atuação obscura do próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, na questão. É verdade que também não ajudam os exageros verbais da corregedora, ministra Eliana Calmon.
Há ainda a opinião de que a insistência em dar publicidade a atos de combate a eventuais casos de corrupção, que não seria generalizada no Judiciário, deixa de fora questões de maior interesse da população, como a lentidão e a inoperância de alguns tribunais e magistrados.
Um dos juízes ouvidos, apesar de crítico à atuação de Gilmar Mendes à frente do STF, lembrou que o antecessor de Peluso deu grande impulso, por exemplo, aos mutirões em presídios. A ação libertou mais de 20 mil pessoas que continuavam presas indevidamente pela simples ausência de uma ordem judicial de soltura.
Faltaria a Peluso a capacidade de liderança e articulação mostrada por Mendes. O atual presidente do STF tem sido visto como alinhado aos que resistem ao papel fiscalizador do CNJ. Uma das razões é sua origem na magistratura de São Paulo, hoje o maior foco de resistência ao conselho. Também é paulista o atual presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), Nelson Calandra, protagonista no confronto com a corregedoria do CNJ.
O que está na base do conflito aberto nos últimos dias, ainda que não seja o ponto central no momento, é a ação de inconstitucionalidade proposta pela AMB contra o que considera excessos do CNJ. A principal discordância diz respeito ao poder que uma resolução do conselho deu à corregedoria do órgão para investigar juízes suspeitos antes mesmos de estes serem alvo de processos nas corregedorias de seus respectivos tribunais.
A AMB questiona diversos itens da resolução, mas o ponto central de sua ação de inconstitucionalidade é que, pelas leis que regem a magistratura, são os tribunais locais que têm competência para investigar seus juízes. O CNJ deveria atuar apenas de forma auxiliar.
As duas posições não são, porém, irreconciliáveis. Em fins de setembro, o Supremo caminhava para construir um meio termo por meio de acordo entre seus ministros. No entanto, uma entrevista de Eliana Calmon, publicada no dia 27 daquele mês, jogou lenha na fogueira e impediu o consenso. Nela, a corregedora afirmou que há “bandidos de toga” no país.
A declaração, por genérica, causou desconforto na maioria honesta do judiciário e enfraqueceu a corregedora. O presidente do STF reagiu à entrevista durante uma reunião do CNJ, que ele também preside e exigiu que o órgão se manifestasse. De próprio punho redigiu uma nota de repúdio às declarações, que foi aprovada pelos 13 conselheiros presentes.
No dia seguinte, estava na pauta do Supremo a análise da ação de inconstitucionalidade proposta pela AMB. Pela terceira vez, o julgamento foi adiado. Depois disso, o tema entrou na pauta em outras dez ocasiões e seguiu sem ser julgado.
Peluso poderia ter agido para que a questão fosse finalmente definida, mas não o fez. Com o início do recesso do Judiciário, o relator do caso, ministro Marco Aurélio Mello, resolveu decidir sozinho e suspendeu parcialmente a resolução. Por sua decisão, o CNJ deve ter um papel subsidiário ao das corregedorias dos tribunais, mas o conselho não perdeu o poder de investigação.
A decisão tem sido apresentada na imprensa como um esvaziamento do CNJ. De fato, o conselho enfraqueceu-se. Mas, em seu voto, o ministro Marco Aurélio indicou as condições em que o CNJ continua a poder intervir: inércia dos tribunais para apurar casos suspeitos, simulação de investigação, adiamento de ações fiscalizatórias e eventual falta de independência das corregedorias em casos específicos.
A questão precisa agora passar pelo pleno do Supremo no próximo ano, quando os ministros poderão por um ponto final na polêmica e definir melhor os meios e condições para que o CNJ siga atuando.
GUERRA ABERTA – O que ainda era apenas um debate, ainda que acalorado, sobre o papel do CNJ tornou-se guerra aberta quando o ministro Ricardo Lewandowsky concedeu uma liminar suspendendo uma investigação em curso pelo CNJ, atendendo a um mandado de segurança apresentado por três entidades de magistrados – AMB, Ajufe (Associação de Juízes Federais do Brasil) e Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho).
A investigação em questão foi iniciada em 2009, quando a corregedoria, então comandada pelo ministro Gilson Dipp, recebeu denúncias de que havia irregularidades no pagamento de verbas atrasadas devidas a juízes e servidores.
Uma decisão do STF em 2000 determinou que os magistrados também teriam tido o direito, durante alguns anos da década de 90, de receber um auxílio moradia. Os pagamentos passaram a ser feitos em parcela, mas alguns receberam os valores de uma só vez. Dentre esses, 17 desembargadores de São Paulo.
A corregedoria pediu então que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) enviasse notificações de todas as movimentações financeiras de mais de R$ 500 mil por ano realizadas em contas vinculadas aos CPFs de juízes e servidores do judiciário.
O relatório do Coaf, concluído no ano passado, apontou 3.438 pessoas com movimentações financeiras consideradas suspeitas. Eliana Calmon decidiu então fazer uma inspeção em 22 tribunais do país.
No mandado de segurança, as associações de magistrados acusam a corregedoria de extrapolar suas funções e ter passado “a investigar eventual prática de crime, e não de infração disciplinar administrativa”. Dizem ainda que essa atribuição deveria ser da Polícia Federal.
Há aqui uma zona cinzenta. Uma investigação sobre os pagamentos feitos pelos tribunais pode ser vista como uma questão administrativa. Mas, se o efeito foi o enriquecimento ilícito dos beneficiados, trata-se também de uma questão criminal.
A liminar concedida por Lewandowsky suspendendo a investigação tornou-se ainda mais polêmica por ter sido ele um dos beneficiados pelo pagamento, ainda que não estivesse diretamente sob investigação por pertencer ao STF. Há juízes que avaliam, porém, que o ministro errou, pois, ainda que indiretamente, ele estaria pessoalmente envolvido no caso. Seja por ter recebido os pagamentos, seja por ter relações com os investigados.
O resultado de toda a polêmica tem sido um desgaste cada vez maior do Poder Judiciário e, em especial do STF, apresentados na imprensa como resistentes ao controle externo representado pelo CNJ. Eliana Calmon, por outro lado, apesar de ter se mostrado pouco habilidosa no relacionamento com os Tribunais de Justiça e com as associações de magistrados, tem saído como vitoriosa moral.
O balanço final pode ser, de fato, um enfraquecimento considerável do CNJ. A questão poderia ser resolvida caso o Congresso Nacional pusesse fim às dúvidas sobre o papel do conselho, aprovando projeto de emenda constitucional do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que redefine as atribuições do CNJ. A polêmica, porém, tem impedido o avanço da proposta.