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Por que a nova classe média brasileira está protestando?

03/07/2013 14h33 - Atualizado há 11 anos Publicado por: Redação
Por que a nova classe média brasileira está protestando?

André Tamandaré, 33, não deveria estar tão zangado. Ao longo da última década, ele – que abandonou os estudos – mudou-se para uma casa própria, conseguiu um emprego estável e ganhou dinheiro suficiente com sua namorada de longa data, Rosimeire de Souza, para levar suas duas crianças para a classe média em ascensão no Brasil.

 

Agora, como trabalhador da área de saúde pública em um imenso subúrbio no Rio de Janeiro, Tamandaré é o tipo de cidadão que o governo do Brasil pensa estar realizado. Em vez disso, ele é um dos mais de um milhão de pessoas no maior país da América Latina que foi às ruas em uma onda de protestos em massa.

Os brasileiros estão protestando contra a má qualidade de escolas, hospitais e transporte público. Eles estão protestando contra o aumento dos preços, o crime e a corrupção. Eles estão criticando a classe política que não conseguiu ver a insatisfação crescente que levou às manifestações.

Combinadas, as preocupações refletem o crescente mal-estar no Brasil de quase 200 milhões de pessoas de que o muito prometido salto do país para o mundo desenvolvido tenha caído por terra, mais uma vez.

“Você só precisa passear um pouco para ver o desenvolvimento que falta”, disse Tamandaré, fumando um cigarro em um banquinho de plástico ao lado de uma mesa em sua pequena cozinha. “Pegue o ônibus, vá para o pronto-socorro. Está tudo ruim, com atendimento péssimo, até perigoso. Fico muito chateado.”

As manifestações, provocadas inicialmente contra um aumento nas tarifas de transporte público, no primeiro momento atraíram a juventude em sua maioria educada da classe média tradicional do Brasil, uma minoria que, historicamente, tem tido mais em comum com a elite rica do que as dezenas de milhões de brasileiros que, até recentemente, estavam na pobreza.

As manifestações decolaram, porém, quando a nova classe média do Brasil juntou-se à briga. “Isso é a raiva das pessoas que já não ficam contentes só por ter um feijão e arroz na mesa”, disse Rodrigo Dutra, um documentarista em Duque de Caxias, outro bairro trabalhador do subúrbio do Rio que está estudando as diferenças entre os recentes protestos e os tumultos que se seguiram a uma escassez de alimentos em 1962.

Muito tem sido falado nos últimos anos sobre a classe média emergente do Brasil – acima de tudo pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que está no poder desde 2003.

Exportações de commodities em expansão, um consumidor ansioso e programas sociais ambiciosos alimentaram uma década de crescimento econômico estável, que alçou 35 milhões brasileiros da pobreza. Mas agora, com a economia mais fraca, muitos na nova classe média dizem que sua ascensão tão apregoada deixa muito a desejar.

“É relativo”, disse Dione Brandão, uma professora, depois de uma recente marcha ao longo da Avenida Atlântica, no bairro de Copacabana, no Rio. “Não adianta aumentar o meu consumo e diminuir segurança, educação.”

 

CLASSE MÉDIA MEDIANA

Os índices de aprovação da presidente Dilma Rousseff, que até recentemente mantinha alguns dos mais altos números das pesquisas de quaisquer líderes eleitos em todo o mundo, estão desabando. Num intervalo de apenas três semanas, desde que os protestos começaram, a avaliação ótima/boa de Dilma caiu 27 pontos percentuais, para 30 por cento, segundo pesquisa do Datafolha.

Brasileiros de classe média estão expressando algumas das mesmas frustrações que alimentam conflitos na Turquia, no Egito e em outros lugares. As demandas variam em cada país, mas refletem em comum lutar para que os governos de países em desenvolvimento atendam às crescentes expectativas.

A própria noção de classe média no Brasil é bastante diferente dos padrões da América do Norte e Europa Ocidental.

Não há subúrbios arborizados e Volvos para a nova classe média aqui.

Em vez disso, o termo classe média é usado de forma ampla para incluir quase qualquer um capaz de pagar o aluguel, colocar comida na mesa e talvez pagar as parcelas da geladeira, microondas ou televisor que o governo do Brasil muitas vezes apregoa como um sinal de seu surgimento.

A chamada “Classe C”, o degrau mais baixo de classe média do Brasil, tem renda de 1.730 reais por mês, cerca de 790 dólares, e, diferentemente da classe média um degrau acima, depende em grande medida de serviços públicos de transporte, educação e saúde.

O problema é que o Brasil investe muito menos em serviços públicos do que qualquer outra grande economia.

Quando a democracia surgiu após duas décadas de ditadura militar, a Constituição do Brasil de 1988 consagrou o estilo europeu de aposentadoria e outros benefícios sociais, apesar das limitações de economia em desenvolvimento do país.

“Adotamos um modelo que gasta muito em transferências a pessoas físicas, mas fica faltando para o investimento público”, disse o economista Samuel Pessoa, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio.

Assim, mesmo com uma carga tributária sobre a população em níveis semelhantes aos de Suíça, Canadá e Austrália, chegando a cerca de 35 por cento da economia, o Brasil gasta a maioria de seus recursos em despesas de pessoal e programas sociais.

Em vez de melhorar estradas, ferrovias ou escolas, o dinheiro vai para o pagamento de aposentadorias, salários e transferências do setor público aos governos estaduais e municipais, que usam os recursos para seus próprios gastos elevados de uma espécie similar.

Menos de 5 por cento das despesas do governo em 2012 foram em direção a investimentos, de acordo com um estudo recente da Credit Suisse.

 

LACUNAS DO GOVERNO

E num momento em que a outrora florescente economia do Brasil economia está presa em uma calmaria prolongada, o governo está sendo apertado, mesmo com o dinheiro que ele tem para investir. No ano passado, o Brasil gastou menos do que 10 por cento dos fundos alocados para projetos de transporte urbano, de acordo com dados compilados pelas Contas Abertas.

O resultado é serviços públicos ruins. Para aqueles que dependem deles, a vida do dia-a-dia é uma bateria de dificuldades que, na melhor das hipóteses, são uma terrível opressão, muitas vezes até mesmo perigosa e mortal.

Trajetos de duas horas, ou pior, não são raros em grandes cidades como São Paulo ou Rio – para não mencionar os sujos, imprevisíveis e caros trens e ônibus conduzidos por motoristas que trabalham em excesso. Em abril, durante uma discussão com um passageiro irado, um motorista de ônibus perdeu a direção em um viaduto, num acidente deixando nove mortos.

Quando os brasileiros chegam em casa, muitas vezes em bairros onde a coleta básica de lixo e esgoto são escassos, eles se preocupam com algumas das mais altas taxas de crimes violentos do mundo. A taxa de homicídios no Brasil, como computado pelas Nações Unidas, foi de 21 mortes por 100 mil pessoas em 2010 –em comparação com 4,8 nos Estados Unidos e 1 na China.

Às vezes não se olha para policiais em busca de proteção, mas para quadrilhas de traficantes ou outras facções criminosas que controlam bairros inteiros.

Os filhos da nova classe média frequentam mais a escola do que em anos anteriores, graças a um plano social para mantê-los no colégio. Mas as crianças não estão aprendendo muita coisa, uma vez lá.

As taxas de alfabetização e os resultados dos testes escolares ficam aquém de muitos outros países em desenvolvimento, e ainda mais distantes dos de economias avançadas que o Brasil espera ser.

Aqueles que não podem pagar planos de saúde privado –e a maioria dos brasileiros não pode– estão à mercê dos hospitais públicos, que muitas vezes não têm suturas, camas e médicos, alguns dos quais são tão desgostosos com o sistema de saúde pública que limitam o trabalho a prestadores privados. Tal é a falta de médicos em hospitais públicos que o governo quer importar os de Cuba.

Os protestos têm sido em grande parte não-violenta. E Dilma, embora surpreendida pelos manifestantes, moveu-se rapidamente para reconhecer as preocupações que tomaram as ruas, reuniu-se com alguns dos protestantes e prometeu aumentar os investimentos, mesmo que pouco.

A queda de sua aprovação ainda não significa uma derrocada eleitoral, especialmente porque os manifestantes não têm um sistema unificado, uma agenda ou um partido político próprio.

E o desemprego permanece perto da mínima histórica no país, o legado de uma década que, para muitos, foi notável.

 

O BOOM

Tamandaré e Rosimeire, o profissional de saúde e sua namorada, estão entre os muitos beneficiários da década passada.

Procedentes de diferentes subúrbios do Rio, eles se conheceram em 2000.

Tamandaré na época ainda morava com sua avó, que o criou em Niterói. Ele trabalhava no reparo de eletrodomésticos.

Rosimeire, naquela ocasião recentemente divorciada e mãe de dois filhos pequenos, tinha sido demitida de um emprego de caixa de supermercado. Ela e os filhos se mudaram com Tamandaré e sua avó e eles começaram a viver como uma família.

Ambos tiveram uma série de empregos temporários, mas nada funcionou.

Em 2005, eles decidiram se mudar para São Gonçalo, onde a mãe de Tamandaré, que morreu quando ele ainda era criança, deixou uma casa pequena com dois quartos. A família tinha alugado a casa por anos, mas ela ficou vaga e em condições precárias.

Tamandaré e Rosimeire se mudaram, encontraram trabalho e reformaram a casa.

“Era um momento de muitas mudanças”, recorda Rosimeire, agora com 35 anos. “Achávamos que era uma oportunidade.”

As coisas estavam realmente mudando.

Uma demanda voraz por minério de ferro, soja e outras commodities para a China e o rápido crescimento de outros emergentes impulsionou a arrecadação do governo e estimulou o crescimento em setores multiplicadores da economia do Brasil.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, antecessor e padrinho político de Dilma, embarcou em políticas fiscais mais ortodoxas, incluindo um orçamento equilibrado, que seu antecessor adotou para estabilizar as finanças públicas.

A maior estabilidade encorajou investimentos por empresas privadas e deu a Lula, que colheu enorme popularidade, espaço para expandir os programas sociais de redução da fome e da pobreza extrema.

Incitados pelo governo, os bancos públicos liberaram crédito e o consumidor, com demanda reprimida, aproveitou.

Em São Gonçalo, Rosimeire e seus filhos distribuíam panfletos de publicidade sobre o trabalho de reparo de eletrodomésticos de Tamandaré. Isso atraiu cada vez mais clientes. Rosimeire, através de amigos e conhecidos, começou a vender lingerie.

Logo eles estavam com uma renda de um mil reais ao mês – então o equivalente a cerca de dois salários mínimos.

Tamandaré cobriu o pequeno quintal e a família comprou armários de cozinha, uma geladeira e uma televisão de 29 polegadas usando crediário.

Os meninos entraram escolas locais, onde, como a maioria dos alunos do sistema público do Brasil, têm menos de cinco horas por dia de aulas. “Não é a melhor”, disse Rosimeire. “Mas não temos como pagar uma escola particular.”

Ansiosa por ainda mais estabilidade, ela começou a trabalhar como agente de saúde para o governo municipal em 2008. Em teoria, a tarefa consistia em visitar as famílias pobres com conhecidos problemas de saúde e certificando-se de que elas estavam recebendo a atenção médica correta.

Na prática, porém, ela tinha poucos recursos para fazer bem o seu trabalho. Sua lista de famílias era tão grande que ela não era capaz de atender todas elas.

Em 2011, por causa de uma mudança no contrato com agentes de saúde terceirizados, ela foi demitida. Com sorte, Tamandaré aplicou para igual emprego quando a prefeitura voltou a preencher as posições, e conseguiu o trabalho.

Ele continuou a fazer reparo de eletrodomésticos e Rosimeire, que ainda vende lingerie, encontrou um emprego como vendedora em uma loja de artigos de cama, mesa e banho.

O trabalho em Niterói, no entanto, significa uma longa viagem de ida e volta para ela. A distância é de apenas 10 quilômetros, mas cada trajeto leva 90 minutos. E o ônibus está totalmente cheio.

“Vou de ônibus em pé, trabalho em pé e fico em pé na volta. É bem puxado. Estou muito cansada quando chego em casa.”

 

ESGOTADA

O crescimento do Brasil também está esgotado. A demanda por matérias-primas da China abrandou.

Consumidores brasileiros, entretanto, nunca estiveram tão endividados como agora. A inadimplência crescente fez os bancos desacelerarem a concessão de empréstimos.

Após um crescimento econômico anual médio de mais de quatro por cento nos dois mandatos de Lula, a expansão média até o fim do atual governo Dilma não deve ultrapassar muito mais do que dois por cento. A inflação, uma preocupação de longa data para os brasileiros, subiu ao ritmo anual de 6,5 por cento.

A desaceleração da economia atrapalha a mensagem para um governo acostumado a contar aos seus cidadãos –na verdade, ao mundo inteiro – que o Brasil finalmente aconteceu.

Ainda recentemente, em abril, Dilma prometeu que a renda per capita dobraria até 2022 – sem levar em conta que economistas dizem que isso exigiria um crescimento médio anual de pelo menos 6 por cento até lá. Dois grandes eventos no Brasil, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, são agora pára-raios de críticas por causa de mais de 25 bilhões de dólares necessários para hospedá-los.

A frustração em São Gonçalo, uma cidade de um milhão de pessoas, começou a se espalhar pela rua. Sua reputação como uma comunidade de trabalhadores começou a mudar para a de um novo esconderijo para traficantes de drogas e outros criminosos que foram empurrados em direção a subúrbios por causa de uma repressão por parte da polícia em favelas cariocas antes das Olimpíadas.

Em fevereiro, Rosimeire foi alvo de um assalto a mão armada.

Na Rua Doutor Feliciano Sodré, uma movimentada via repleta de lojas de varejo, bancos e bares, vitrines já estão tapadas porque vândalos quebraram janelas durante um recente protesto. Em um ponto de ônibus, os passageiros se afastam do meio-fio, enquanto os carros se aproximam, para fugir do respingo de uma poça de esgoto transbordando.

Dentro de uma grande loja de eletrodomésticos e móveis, o gerente Vander Oliveira disse que as vendas dispararam durante o boom da economia e agora estão estáveis. “Eu só vejo problemas no horizonte”, disse ele, em um ambiente com mais vendedores do que clientes.

Tamandaré e Rosimeire juntos agora ganham mais de 2 mil reais por mês, cerca de três vezes o salário mínimo.

Apesar da ligação com o serviço de saúde local, no entanto, eles usam cerca de um quinto da renda para pagar o plano de saúde privado. “Cada dia eu vejo a péssima qualidade da saúde pública”, disse ele, que tem fotos de um pronto-socorro em seu celular. Uma das torneiras no local, por exemplo, não é uma torneira –apenas uma extensão serrada da tubulação aparente de água.

No pronto-socorro em si numa tarde recente, pacientes, amigos e familiares esperam do lado de fora de uma sala de emergência lotada. Um balde fica estrategicamente sob um buraco no teto, no meio de uns poucos no local que conseguiram ocupar as poucas cadeiras disponíveis.

O segurança Wellington Nascimento, 38, espera com a sua filha por uma amiga que caiu, cortou e, possivelmente, quebrou o nariz.

Nascimento recorda de uma visita no ano passado, quando ele chegou ao pronto-socorro com febre, dor de estômago e vômitos. Ele disse nunca ter visto um médico e deixou o local depois de oito horas.

“Não sei quando vamos conseguir sair daqui. Pode ser o dia todo.” (reportagem adicional de Walter Brandimarte)

 

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