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Produção e controle de qualidade do IFA levam 90 dias

Representante da instituição explica cada passo dessa jornada

15/06/2021 08h55 - Atualizado há 3 anos Publicado por: Redação
Produção e controle de qualidade do IFA levam 90 dias Foto: Reprodução / Fiocruz

Desde a chegada dos bancos de células e vírus na semana passada, cientistas do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) deram início a uma maratona de cerca de três meses para produzir o primeiro lote nacional do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) da vacina Oxford/AstraZeneca contra a covid-19. Em ritmo de urgência, o trabalho requer alta precisão para evitar desperdício da matéria-prima, já que apenas 1 mililitro (ml) das células recebidas é o ponto de partida para a produção de 7 milhões de doses de vacinas.

Em entrevista, o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Marco Krieger, explicou cada passo dessa jornada, que considera revolucionária para enfrentar novos e antigos desafios da saúde pública. O “coração” do processo produtivo, explica Krieger, é a utilização do mesmo banco de células e da mesma semente de vírus que os desenvolvedores da vacina usaram, para garantir que se chegue aos mesmos resultados dos testes clínicos que confirmaram a eficácia e a segurança do imunizante.

“Em todo o processo de transferência de tecnologia, a parte mais importante, e que normalmente fica até para o final do processo, é o recebimento desse banco de células e banco de vírus, porque agora a gente tem as condições de iniciar todo o processo de produção a partir de células que já foram analisadas, classificadas, e com que a gente já tem garantias de que terá o produto esperado”, diz Krieger. “Já temos aqui todo o coração da tecnologia, o que normalmente aconteceria em 10 anos”.

Os bancos de células e vírus que chegaram à Fiocruz na semana passada garantem a produção de IFA por mais de um ano, segundo o vice-presidente da fundação. O contrato de transferência de tecnologia com a AstraZeneca prevê que outros carregamentos vão chegar para alimentar a produção por quatro anos. Essas novas remessas poderão trazer aprimoramentos da vacina que, futuramente, deverão surgir a partir de novos estudos ou mutações do vírus. Bio-Manguinhos também se tornará autossuficiente na produção desses bancos de células ao final desse período, o que vai permitir a produção da vacina contra covid-19 por cerca de 30 anos.

De 1 ml a mil litros

Antes de trabalhar com as células recebidas, os técnicos de Bio-Manguinhos passaram por um treinamento com células semelhantes para ganhar experiência no descongelamento do banco de células, que chegou dos Estados Unidos a uma temperatura de -150 graus Celsius. “Esse material é tão precioso que não podemos correr o risco de ser desperdiçado”, explica Krieger, acrescentando que neste momento a fábrica de vacinas da Fiocruz já iniciou o trabalho com as células que produzirão o IFA.

Apesar de essas células poderem ser multiplicadas em laboratório, Krieger explica que elas são preciosas porque a produção de um lote de IFA deve sempre partir de 1 ml de células que sejam geneticamente próximas do banco inicial. Como as células acumulam modificações de geração em geração ao serem replicadas, esse controle garante que o resultado final se mantenha dentro do esperado.

Esse 1 ml inicial começa a ser cultivado em pequenos frascos, que são trocados por outros de maior capacidade conforme seu volume aumenta, até que chegue a um biorreator de mil litros. Nesse biorreator, também chamado de fermentador, as células são alimentadas com nutrientes e oxigênio para que se multipliquem ainda mais e aumentem a densidade desses mil litros. Esse processo do 1 ml aos mil litros é chamado de expansão celular e precisa ser cuidadosamente conduzido por cerca de 40 dias.

É nesse biorreator que as células começam a interagir com os adenovírus de chimpanzé não replicantes, que são usados na vacina. A partir dessa interação, o adenovírus é preparado para atuar como vetor viral, que leva as informações genéticas do SARS-CoV-2 para que nossas células repliquem a proteína S, usada pelo novo coronavírus na invasão celular.

O conteúdo do biorreator precisa passar por uma série de processos após essa interação, como a clarificação e a purificação, já que ocorre um rompimento das células e a produção de partículas que não são necessárias na vacina. Depois de 45 dias, aquele 1 ml que inicia a expansão celular se torna mil litros do concentrado viral, que é conhecido como IFA.

Controle de qualidade

Toda a caminhada para chegar até o IFA é apenas a metade do trajeto, já que o controle de qualidade a que ele é submetido exige mais 45 dias. Os testes realizados nesse momento precisam garantir, entre outros critérios, que não houve contaminação de outros micro-organismos. A verificação mais importante, porém, é a que garante que o adenovírus não é capaz de se replicar, o que é essencial para a segurança da vacina.

“Temos que provar que ali dentro não tem nenhum adenovírus competente para replicação, porque ele poderia ter uma recombinação com o genoma da célula e voltar a ser replicante. Pode acontecer, mas é muito raro”, diz Krieger. “Por isso que demora tanto tempo, porque temos que garantir que não tem nenhuma partícula viral, em bilhões de partículas, que seja replicante”.

Essa questão é tão importante que foi o principal motivo dos questionamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em relação à vacina Sputnik V, que também tem a plataforma tecnológica de vetor viral. Após nova análise, a Anvisa autorizou a importação da vacina russa com restrições.

Garantidas a não replicação do adenovírus e a pureza do IFA, o insumo está pronto para o processamento final, que é a formulação das doses e seu envase em frascos estéreis, que são lacrados e rotulados. Essa é a parte da produção que a Fiocruz já tem realizado com o IFA importado da China e, entre a fabricação e mais testes de qualidade, ela demora entre 20 dias e um mês.

Bio-Manguinhos estima que mil litros do concentrado viral produzem cerca de 7 milhões de doses da vacina contra a covid-19. Como o instituto tem dois biorreatores, cada ciclo produz IFA para cerca de 15 milhões de doses.

Devido à urgência da pandemia, Bio-Manguinhos já vai trabalhar na capacidade máxima nos lotes de pré-validação e validação, nos quais a linha de produção é testada e certificada. “O padrão é fazer [os lotes de pré-validação e validação] com um terço do lote comercial, ou entre um terço e 50%. No nosso caso, pela urgência da vacina, pelo conhecimento que a gente já tem e o suporte que estamos recebendo dos nossos parceiros, vamos fazer no tamanho do lote comercial”, explica Krieger.

Certificação

As 15 milhões de doses produzidas a partir dos dois primeiros lotes de IFA só devem chegar ao Programa Nacional de Imunizações em outubro, daqui a quatro meses. O insumo está no início da expansão celular, e deve levar cerca de 45 dias para ficar pronto, mais 45 dias para ser testado e até um mês para ser formulado e envasado em doses com eficácia e segurança também asseguradas. Conforme a produção avançar, novos ciclos produtivos vão ser iniciados a partir da expansão celular, para que os resultados sejam entregas mensais ininterruptas de cerca de 15 milhões de doses a partir de outubro.

Além da assimilação dos processos produtivos e de controle de qualidade, a nacionalização do IFA ainda requer trâmites regulatórios. Conforme avança na produção, Bio-Manguinhos iniciará uma nova submissão contínua de documentos para que a Anvisa reconheça que a fábrica da Fiocruz garante a mesma qualidade que o Wuxi Biologics, de onde o IFA é importado. O laboratório chinês é registrado atualmente na Anvisa como o fornecedor do IFA da vacina Oxford/AstraZeneca, e o acréscimo de um novo fornecedor requer nova aprovação da agência, o que só deve ser concluído em outubro.

A qualidade do IFA de Bio-Manguinhos também será posta à prova em testes comparativos que serão feitos em laboratórios qualificados pela AstraZeneca no exterior. Dois lotes de pré-validação e três de validação passarão por esses testes, que vão garantir que o IFA nacional produziu doses equivalentes àquelas que foram desenvolvidas pelos cientistas da Universidade Oxford.

“Esse estudo é muito importante, nos dá bastante confiança, mas tem que ser feito por terceiros, até para não termos nenhum conflito de interesse em ser o produtor e atestar que o produto está adequado”, diz Krieger, que explica que tanto o IFA quanto as doses produzidas a partir dele serão comparados em diversos aspectos, que vão desde os processos produtivos até o resultado final.

Segundo o vice-presidente da Fiocruz, a fundação ainda negocia, com intermédio da AstraZeneca, para definir qual laboratório estará disponível para realizar o teste de comparabilidade o mais rápido possível.

Vacinas terapêuticas

A assimilação da plataforma tecnológica de vetor viral na Fiocruz abre caminho para outras pesquisas, que poderão modernizar vacinas existentes ou criar novas vacinas e tratamentos para doenças que desafiam a medicina.

Entre os pontos mais promissores da nova tecnologia, Krieger destaca a maior velocidade de fabricação e a eficácia mais alta na proteção contra as doenças que a vacina busca prevenir. No segundo caso, o vice-presidente de Inovação da Fiocruz sublinha que tanto as vacinas de vetor viral quanto as de RNA mensageiro municiam o corpo com o que é chamado de imunidade celular, que vai além da produção de anticorpos.

Essa defesa adicional, acrescenta, é importante porque, além de os anticorpos destruírem os invasores que tentam infectar as células, o corpo aprende a destruir as células que já foram infectadas, freando a replicação dos vírus no organismo.

“Essas vacinas permitem que você não ataque só o patógeno, mas ataque, por exemplo, a célula infectada. Fazendo uma analogia, isso seria muito desejado para o câncer. Poder usar uma vacina terapêutica [que trata a doença], em vez de uma vacina profilática [que previne a doença]”.

Krieger acrescenta que vacinas genéticas como as que têm sido usadas contra a covid-19 também podem ter potencial para atender a doenças causadas por protozoários, como é o caso da malária e da doença de Chagas, além de proporcionar respostas mais rápidas a futuras doenças que possam surgir.

“A pandemia foi uma catástrofe, mas acelerou a transferência para a sociedade de conhecimentos muito importantes que estavam sendo gerados na imunoterapia nos últimos anos. Não tenho dúvidas de que isso vai mudar a maneira como a gente vê a utilização das vacinas. Elas serão não só profiláticas, mas cada vez mais terapêuticas”.

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