(*) Azuaite Martins de França
“Ver com os olhos livres”
Essa não é apenas a proposta de Oswald de Andrade no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, mas a finalidade histórica de uma instituição universal denominada ESCOLA.
Em outras palavras, o homem enxerga tanto mais profundamente a realidade, quanto mais desfaz preconceitos e combate privilégios.
Ver com os olhos livres é a condição fundamental para a construção do pensamento livre e, dessa maneira, a construção de uma sociedade livre e consciente.
Recentemente, a imprensa trouxe à tona uma iniciativa do agronegócio brasileiro para revisar conteúdos de livros didáticos e sistemas de ensino que, na visão do setor, retratam a atividade de forma negativa ou desatualizada. Ora, é inaceitável que o currículo escolar possa se dissociar da ciência e tornar se refém de investidas reacionárias como a da associação De Olho no Material Escolar ao questionar menções a impactos ambientais, trabalho escravo e até a existência de latifúndios.
Não posso deixar de manifestar minha indignação frente a esse tipo de pressão. Vivi experiências semelhantes em 1985, quando se pretendia queimar livros para moldar consciências. A história mostra que livros foram queimados, pessoas foram perseguidas, mas as ideias jamais se extinguem. Elas inflamam e persistem. E é justamente por isso que a educação precisa ser baseada em ciência, história, cultura e valores universais, e não em interesse circunstanciais e privados.
A EMBRAPA é um exemplo vivo de como a pesquisa científica brasileira transformou uma agropecuária atrasada em um dos setores mais dinâmicos da economia nacional. Seu trabalho combina produção agrícola com preservação ambiental, demonstrando que desenvolvimento e sustentabilidade podem caminhar juntos. Ignorar esse legado e interferir no conteúdo dos livros didáticos é um retrocesso perigoso.
A tentativa de controlar o que estudantes aprendem não se trata de atualização pedagógica, mas de dominação ideológica. Se a intenção fosse apenas corrigir desatualizações, haveria diálogo com pesquisadores, autores e educadores. Mas não se trata disso: pretende-se apagar fatos históricos e científicos, como se a expansão agrícola brasileira não tivesse impactos ambientais significativos, ou como se a concentração de terras fosse uma inverdade.
Não se trata de fato isolado. Trata-se da etapa de um projeto.
“Na primeira noite eles se aproximaram
e roubam uma flor
do seu jardim.
E não dizem nada…”
Estudantes precisam compreender a importância da preservação das florestas, da biodiversidade, da história do homem primitivo e da evolução da agricultura brasileira. Devem ser instigados a pensar, criticar e agir, e não a receber narrativas moldadas por interesses corporativos. Como destacou Claudia Costin, ex-diretora global de Educação do Banco Mundial, atualizar o material didático é legítimo; apagar a realidade, não.
Autores e editoras de livros escolares, apoiados por associações como Abrale e Abrelivros, seguem critérios rigorosos, baseados em ciência, pesquisa acadêmica e orientações do MEC. Os conteúdos refletem décadas de estudo e evolução do campo brasileiro. Alterar ou omitir fatos para agradar setores econômicos não apenas desvirtua o ensino, mas ameaça a formação crítica dos futuros cidadãos.
O agronegócio – responsável por 23% do PIB brasileiro – tem o direito de mostrar seus avanços e boas práticas, mas isso deve ocorrer sem apagar problemas históricos ou minimizar impactos socioambientais. O material didático deve servir à educação e ao conhecimento, não à propaganda.
O que está em jogo é o direito à memória, à história e ao pensamento crítico. Defendo que o conteúdo escolar seja referenciado em pesquisas reconhecidas, com transparência, participação de professores, alunos e especialistas, e que mudanças sejam discutidas amplamente, não impostas por pressões.
O verdadeiro progresso é educar para a responsabilidade — econômica, social e ambiental. Que o ensino público respeite a complexidade do Brasil, apresente dados, discuta impactos e, acima de tudo, preserve a liberdade de pensar, questionar e construir soluções que mantenham o país vivo, justo e sustentável.
Sugestão de Leitura:
Baez, Fernando – “História Universal da Destruição dos livros”
Orwell, George – 1984”
(*) O autor é professor e vice-presidente do Centro do Professorado Paulista
