Cepa de coronavírus de Manaus pode se tornar dominante no Brasil
Professor, médico e presidente do Comitê de Controle e Cuidados Relacionados ao Novo Coronavírus da UFSCar explica
O professor, infectologista e presidente do Comitê de Controle e Cuidados Relacionados ao Novo Coronavírus da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos – SP), Bernardino Alves Souto, avalia que a nova linhagem do coronavírus – cepa de Manaus (Amazonas) – se for identificada como a mais transmissível, poderá se tornar a mais prevalente no país.
“Suspeita-se que seja mais transmissível e ainda se estuda se pode causar doença mais grave”, explicou o infectologista. Os estudos da nova linhagem buscam saber se ela pode burlar o sistema imunológico causando reinfecções ou prejuízo à eficácia das vacinas.
A cepa foi encontrada em 91% das amostras de vírus sequenciadas ao longo de janeiro em Manaus e é apontada pelos cientistas que monitoram a pandemia na região como a responsável por acabar com a imunidade coletiva que havia na capital, resultando em uma nova explosão de casos de covid-19 neste início de 2021.
A Prefeitura de Araraquara confirmou a circulação da nova cepa do coronavírus na cidade. O aumento da transmissão da Covid-19 nas últimas semanas e a mudança no perfil dos pacientes internados levantam essa investigação pelas autoridades de saúde.
O Sesa enviou 12 amostras de pacientes com Covid-19 leve, moderada e grave para análise do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, órgão vinculado à USP (Universidade de São Paulo). Essas amostras foram colhidas em cinco pacientes que estavam no Hospital da Solidariedade (hospital de campanha), cinco no Pronto-Socorro do Melhado e dois na UPA da Vila Xavier (polo de triagem).
Confira a entrevista:
PRIMEIRA PÁGINA – A nova cepa do coronavírus identificada em Manaus (Amazonas) deve se tornar a variante dominante no Brasil?
BERNARDINO ALVES SOUTO – Se ela se confirmar que é mais transmissível como se suspeita, poderá se tornar a mais prevalente no país.
PP – Qual o diferencial dessa linhagem em relação ao vírus que chegou no início do ano passado ao Brasil?
BERNARDINO ALVES SOUTO – Suspeita-se que seja mais transmissível e estuda-se ainda se pode causar doença mais grave, e se pode burlar o sistema imunológico causando reinfecções ou prejuízo à eficácia das vacinas, entre outras possibilidades.
PP – Qual o efeito desta nova variante no índice de internação e agravamento do quadro clínico.
BERNARDINO ALVES SOUTO – Considerando que seja realmente mais transmissível, teremos maior número de doentes em intervalos de tempo mais curto, consequentemente maior número de pessoas precisando de hospital e maior número absoluto de mortes por Covid-19; exceto se tomarmos as medidas de controle da pandemia necessárias para que a transmissão comunitária seja interrompida, as quais ainda não foram adotadas no Brasil.
PP – São Carlos tem 12 mil pessoas vacinadas em um universo de 43 mil do grupo prioritário e uma população estimada em 250 mil pessoas. Significa que teremos um longo caminho até uma imunização de massa. Como será a nossa vida nesse período?
BERNARDINO ALVES SOUTO – Se não fizermos muito isolamento e distanciamento social; se não usarmos máscara insistentemente; se não investirmos na vigilância epidemiológica e na atenção básica de saúde para que tenham condições operacionais e tecnológicas para conter a transmissão comunitária da Covid-19; se não fizermos testagem diagnóstica e isolamento em massa de infectados; se não financiarmos o setor produtivo para que possa cuidar da vida antes de ter que cuidar do dinheiro; se pensarmos somente cada um em si em detrimento da coletividade, nossa vida será de muitos doentes nos hospitais e muitas perdas humanas e econômicas. Está em nossas mãos a escolha sobre como será a nossa vida nesse período: se será uma vida regrada de medidas concretas contra a pandemia ou se será uma vida de perdas e sofrimentos irreparáveis.
PP – As novas linhagens do vírus poderão interferir e invalidar a imunização que está em andamento?
BERNARDINO ALVES SOUTO – Não parece que isto aconteceu ainda, mas, não é impossível que aconteça em algum momento e em alguma proporção porque à medida que o vírus vai acumulando mutações, vai se adaptando para sobreviver na natureza e burlar tudo aquilo que o impede. Esta contingência nos obriga, também, a adaptar nossos meios de combate ao vírus. Se o vírus mudar a ponto de invalidar as vacinas, teremos que adaptar estas vacinas ou criar outras que combatam as novas formas mutantes do vírus.
PP – O ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta afirmou que a variante do coronavírus surgida em Manaus pode gerar uma megaepidemia no Brasil em até 60 dias. O senhor acredita nessa teoria?
BERNARDINO ALVES SOUTO – Se ela for mais transmissível como se suspeita, é possível que isso aconteça e devemos nos preparar o quanto antes por meio de medidas mais eficazes de combate à pandemia; especialmente se ocorrer mais acúmulo ainda de mutações no vírus. Precisamos ter em mente que quanto mais o vírus se espalha, quanto menos controlamos a epidemia, maior a chance de o vírus sofrer mutações e piorar a nossa condição de enfrentamento. Portanto, ou controlamos rigorosamente a pandemia com isolamento e distanciamento social, qualificação das ações de vigilância epidemiológica, uso de máscara, produção científica e outras coisas, ou não teremos saída diante desta situação.
PP – A política pública adotada por São Carlos no controle de uma crise sanitária cumpre seu papel?
BERNARDINO ALVES SOUTO – São Carlos tem adotado algumas medidas que já se mostraram ineficazes em controlar a pandemia, assim como acontece em todo o Brasil. A prova disso está nos números crescentes e não controlados da Covid-19. O Brasil, o Estado de São Paulo e os municípios, inclusive São Carlos, precisam urgentemente assumir medidas mais agressivas contra a pandemia; medidas mais incisivamente técnicas do que politicamente negociadas. Acho que o papel que precisamos cumprir é bem maior do que o que estamos cumprindo.
PP – Na sua avaliação, a informação é o meio mais eficaz para conscientizar a população dos riscos de uma grave epidemia?
BERNARDINO ALVES SOUTO – A informação qualificada e a educação é base para tudo. Investir nisso sempre ajudará muito em qualquer tempo. Também é preciso oferecer à população, aos empresários, aos trabalhadores, etc., informação e condições para se aderirem às medidas de combate à pandemia. Por outro lado, existem outros aspectos de formação cultural da nossa gente como o modelo social individualista e competitivo, a cultura de privilégios e outras coisas que leva tempo para se modificar e prejudicam muito o controle da pandemia. Numa condição grave e aguda como a que estamos vivendo, além da provisão de informação de qualidade, reflexão crítica e suporte social e econômico, talvez seja necessário, também, adotar medidas coercitivas em casos de resistências fundamentadas na má fé, na má intenção ou na desonestidade para que o controle do agravo seja possível em curto prazo.
PP – O senhor explicar sobre o efeito individual da vacina e a vacinação?
BERNARDINO ALVES SOUTO – A vacina é um produto farmacêutico que chamamos de imunobiológico e que, na prática, é o que aplicamos nas pessoas para que o organismo delas desenvolva anticorpos contra uma ou mais doenças específicas. A vacinação é um conjunto de ações técnicas estrategicamente planejadas para garantir que aquilo que a vacina é capaz de fazer nas pessoas (a sua eficácia em protegê-las contra determinadas doenças) possa servir para contenção da doença e minimização de suas consequências no conjunto da população. O efeito individual da vacina não é a mesma coisa em termos de efeito populacional e a vacinação é uma estratégia utilizada para colocar este efeito individual em benefício da coletividade. No caso das vacinas contra a Covid-19 disponíveis no Brasil, elas têm importante efeito em reduzir a ocorrência de casos graves e mortes nas pessoas que a recebem. Considerando esta característica, a vacinação (o modelo de distribuição da vacina na população) precisa perseguir o objetivo de diminuir o número de novos casos graves e de mortes na coletividade. Para alcançar este objetivo, a vacina precisa ser priorizada naquelas pessoas e naqueles lugares onde a incidência de casos graves e de mortes é maior para que tenha sua eficiência otimizada. Se pegarmos uma vacina com as características citadas e a administrarmos em pessoas que não têm maior potencial de evoluir para formas graves e morte, não conseguiremos diminuir o número global de casos graves e de mortes na população; ou seja, a vacinação perderá eficiência em controlar a doença ou minimizar suas consequências na comunidade. Esse controle populacional é mais importante que a proteção individual porque controlando a doença na população e reduzindo a circulação do vírus, mesmo quem não for vacinado poderá ficar protegido. Por outro lado, imunizando pessoas cujas características individuais não influenciam significativamente a circulação do vírus na comunidade, mesmo quem for vacinado não terá garantia de estar completamente protegido porque o vírus continuará presente no ambiente comunitário.
PP – Só o lockdown é suficiente para barrar o vírus e mudar a curva de contaminação?
BERNARDINO ALVES SOUTO – Lockdown isoladamente, apenas reduz um pouco e temporariamente a sobrecarga do sistema de saúde e não tem eficácia em controlar a epidemia a médio e longo prazos. Especialmente se já tiver data marcada para começar e terminar. O Lockdown deve ser a primeira medida, mas, também é necessário investir, ao mesmo tempo, na vigilância epidemiológica e na atenção básica de saúde para que tenham condições operacionais e tecnológicas para conter a transmissão comunitária da Covid-19, informar e educar a população, usar máscara insistentemente, fazer testagem diagnóstica e isolamento em massa de infectados, subsidiar o setor produtivo para que possa cuidar da vida antes de ter que cuidar do dinheiro e várias outras medidas. Nenhuma ação isolada consegue dominar a Covid. É necessário um conjunto de ações articuladas em favor do objetivo comum de combater a epidemia, a qual exige vários pontos de abordagem simultânea para que seja controlada. Da mesma forma é fazer testes diagnósticos e não garantir efetivamente o isolamento e o rastreamento dos infectados e seus contactantes: resulta em desperdício de teste porque a testagem deixa de servir ao controle da doença na população e passa a ser apenas um instrumento burocrático para contar e registrar os casos.