Uma cidade para viver e lembrar
Opinião de Cirilo Braga
Foi de trem que ainda criança eu desembarquei em São Carlos pela primeira vez, como tantas pessoas para quem o primeiro cartão postal são-carlense é a Praça Antonio Prado, que fica em frente à estação ferroviária.
Daquelas cercanias tem-se uma visão privilegiada do centro. E o fato de a praça ser praticamente uma rotatória compunha a visão de uma cidade charmosa que casava com o imaginário. São Carlos sempre desfrutou de uma aura bacana aos olhos dos habitantes da região. Nunca foi um lugar comum, um clichê e nunca será.
A cidade conservava o aspecto da era dos bondes que ficara no passado. Eles já haviam saído de circulação, assim como a Escola Normal já vivia outra época. Ainda assim cidade do Bispo e da Escola de Engenharia da USP, que fabricava tratores, geladeiras e lápis, podia ser tudo, menos comum.
Viver em uma cidade por muitos anos e incorporar-se a seus moradores é como um casamento daqueles que o tempo não esgarça. Basta se afastar um pouco para observar à distância e em perspectiva para realçar seu valor. Seja pela diversidade que se concentra em pouco espaço, seja pela bela história construída por gente vinda de todos os cantos, de “laço firme e braço forte”, como diz a canção.
A certeza é que não terá sido pelos belos olhos que a cidade recebeu a única universidade federal do interior de São Paulo (empresta parte desse gosto a Araras e Sorocaba, que se rendem à “matriz”). Não terá sido pela água milagrosa da Biquinha do Padre que aqui se formou o maior parque industrial da região. Nem pelas contendas políticas históricas que se converteu em polo tecnológico.
As “subidas e descidas” de São Carlos foram lembradas no livro “Às Margens do Sena”, de memórias do jornalista Reali Jr. Muito antes de fazer história na imprensa como o correspondente em Paris, o “embaixador não-oficial do Brasil na França”, Reali passou aqui parte da infância e dela relembra com carinho no depoimento a Gianni Carta: “Bons tempos aquele de São Carlos!”, diz na página 36.
Outro jornalista que se tornou escritor renomado, o araraquarense Ignácio de Loyola Brandão em seu livro “Dentes ao Sol” dá a palavra a um personagem-narrador que fora “exilado nas montanhas de São Carlos” e ele afirma: “O bonde vai devagar e gosto de olhar a cidade que conserva tantas coisas que nenhum outro tem. Não sei se foi porque me receberam assim, mas tenho amor a este lugar”.Em outro trecho,diz: “Lembra quando a gente era criança? Era a diferença nossa para São Carlos.Lá tinha bonde”.
A cidade é única em nosso universo pessoal e disso me dou conta nos dias de hoje ao passar pelas cercanias do prédio da Escola “Dr.Álvaro Guião” e constatar o quanto aquela região me diz respeito: ali perto, na rua Padre Teixeira, foi onde minha família veio morar no começo do ano de 1972.
“Posso te falar dos sonhos, das flores, de como a cidade mudou”, diz uma canção de Herbert Vianna. Sonhos, flores e mudanças ligam a atualidade àquele tempo.
Os sonhos não eram tantos, embora fôssemos uma versão daqueles seriados de TV.Morávamos numa casa espaçosa, onde cabiam gatos, cachorros, passarinhos e até frangos que passaram uma temporada no porão.São Carlos para nós,vindos de Boa Esperança do Sul,era o quadrilátero em torno da escola “Dr.Álvaro Guião”. Na época, “Instituto de Educação”. No bolso do meu uniforme havia a inscrição “CPA do IEE”, que viria ser Curso Primário de Aplicação do Instituto de Educação Estadual. Na minha classe se misturavam alunos vindos de Santa Eudóxia e familiares de Ernesto Pereira Lopes. Outros tempos.
O prédio está preservado, segue belíssimo, mas para falar de flores, elas já não existem como existiam nos canteiros fronteiriços da escola. O vandalismo parecia seletivo, pois poupava as plantas como o amor-perfeito nos canteiros, mas pichava o busto do patrono. A primeira crônica que publiquei num jornal da cidade e que apareceu certa manhã no velho “O Diário” foi condenando os rabiscos pichados no prédio da escola. Algo um tanto conservador para um jovem, mas era uma causa nobre,como notou o professor Carlos Sampaio,colunista do jornal.
No entorno de onde morávamos havia escolas, supermercados, igrejas,sorveterias e bares como a Padaria Perez, a bomboniere Elias, o Bar do Cidão e as sorveterias Kawakami, Romanelli e Polar,além é claro da livraria Moderna.Eu achava bacanas os nomes das ruas como Aquidaban e Episcopal e o apito das fábricas de tapetes e de conservas que me avisavam que era hora de tomar banho para ir à escola. A gente nem precisava olhar o relógio, tanto assim que um dia um senhor sisudo, ao lhe serem perguntadas as horas, respondeu que “relógio de pobre é em cima da igreja”. Da igreja São Sebastião, onde levávamos nossas preces. Minha casa ficava no meio do caminho entre aquela paróquia – criada em 1972 – e a Catedral, onde me fascinavam os vitrais coloridos.
No centro da cidade, despontavam lugares como o bar Maneco, o restaurante Bambu, o Café do Centro, entre outros.
Ao passar hoje pelas cercanias do antigo supermercado Dotto, tudo me parece familiar; tem, por exemplo, a nostalgia da figura do saudoso Rubens Desiderá, personagem estimadíssimo e a quem meu pai contava algumas de suas anedotas.
Meu pai já estava aposentado da rotina de escrivão de Polícia e tinha uma capacidade muito grande de analisar o comportamento das pessoas. Por isso criava as próprias histórias,piadas e lendas que contava. Aquele microcentro da cidade era para ele um solo fértil. Os velhos amigos se divertiam tanto quanto os recém-chegados às imediações da imperdível Padaria Perez do Vado e do Manoel.
Os anos 1970 vividos ali entre as ruas Padre Teixeira e São Joaquim deram lições de como gostar da São Carlos tradicional. A que apreciava lavar as calçadas, reclamar do IPTU, ir à missa dos domingos, ler a Coluna do Adu com religiosa frequência, se encontrar no supermercado, invariavelmente reclamando dos preços, e ver Ronald Golias na “Praça da Alegria”, fazendo referências à cidade”.
De lá para cá São Carlos espichou, foi ganhando mais carros nas ruas, escritórios no lugar de moradias, edifícios e estacionamentos onde existiam casarões, farmácias onde havia bares e mercearias e na área central apenas a aparência de edifícios como o Edifício Rosa de Prata ajudam não desfazer o elo com outra época.
Não se diga que o trânsito de veículos ficou pior na região, pois eram comuns as colisões e atropelamentos como os que vitimaram o jornalista Totó e dona Pasqueta, a senhora que estava sempre acompanhada de seu poodle.
Cruzando as ruas do velho quadrilátero, reflito que homens e cidades se traduzem no que é efêmero e no que permanece. Ainda que alguém viva por curto espaço de tempo na cidade, de alguma forma ela o acompanhará na memória de suas ruas, paisagens, casas, pessoas, vilas, prédios, árvores, rios, praças e tipos humanos. O amanhecer, o entardecer, as noites, até o cheiro da cidade. O que chamamos de saudade é a lembrança pungente da vida que nela se realizou e se realiza.
Ficar na cidade é uma escolha nem sempre admitida. Damos mil razões para ficar quando lá no fundo do coração, a gente sabe que é apenas vontade de não ir embora.