Bebel Gilberto fala do novo álbum que fez depois de perder pai e mãe
A cantora e compositora Bebel
Gilberto, 53 anos, se preparar para lançar um novo álbum imerso muitas vezes em
uma tristeza contida e diluída pela atmosfera dos arranjos eletrônicos. Na
verdade, ela já começou a fazer isso, divulgando até aqui duas músicas, deixa e
Bolero, do disco que terá o nome de Agora. Produzida por Thomas Bartlett,
pianista e um especialista em criar ambientações que já foram requisitadas em
álbuns de artistas em busca de alguma sofisticação eletrônica, desde a banda
The National até Yoko Ono, passando por São Vicente, Anna Calvi, Norah Jones,
Florence + The Machine e Glen Hansard, Bebel fala ao Estado com o disco já
finalizado, mas aguardando o melhor momento social para lançá-lo.
É o primeiro trabalho de Bebel depois da perda
da mãe, a cantora Miúcha, em dezembro de 2018, e o pai, João Gilberto, seis
meses depois. Bebel conta o que pode sobre o novo álbum, sobre a vida sem os
pais e, de volta ao Brasil há dois anos depois de uma longa temporada em Nova
York, sobre sua avaliação do governo de Jair Bolsonaro.
Ouvindo as músicas lançadas até aqui, Bolero
e Deixa, podemos esperar um disco novo dentro dessa aura de clima eletrônico?
Essa seria uma indicação da produção do Thomas Bartlett?
Sim, este disco tem um clima eletrônico e também
um clima nostálgico. O Thomas é um tecladista que gosta de trabalhar com loops
e acaba por misturar teclado com outros instrumentos também eletrônicos. A
ideia de fazer um disco totalmente eletrônico, na verdade, veio de nós dois
quando começamos a trabalhar juntos. Chegamos à conclusão de que a gente queria
para este projeto ter apenas ele e o Magrus, baterista brasileiro que mora nos
Estados Unidos há 25 anos e trabalha comigo há 20.
Já havia um conceito antes da gravação?
Na verdade, começamos a gravar este disco sem
nos dar conta de que estávamos realmente compondo para um novo disco. Quando eu
e Thomas nos encontramos pela primeira vez, o objetivo era apenas compor sem
absolutamente nenhuma direção. Como ele conhece muito o meu gosto musical, foi
preparando algumas ideias que se encaixaram nas minhas melodias perfeitamente.
Quando nos demos conta, tínhamos 17 músicas! Onze delas estão no disco.
Que hotel é esse que aparece no clipe da
música Deixa?
O nome do hotel é The NoMad Hotel e fica em Los
Angeles. A ideia do clipe foi do Erik Sohlstrom, talentoso diretor de
fotografia sueco e amigo meu de longa data, mas quem escolheu o hotel fui eu.
Conheço o diretor-geral, que trabalhou por 20 anos no Hotel Chateau Marmont,
onde eu sempre me hospedava, o que acabou facilitando tudo, uma vez que já
estava hospedada lá para fazer um concerto privado, em fevereiro deste ano. A
direção-geral foi do Erik.
Alguma das novas canções você já leva no
coração?
Como a gente levou um bom tempo gravando, eu
acabei me apaixonando pelas composições mais recentes. Eu diria que Essence e
Cliché são duas das minhas preferidas.
Você terá parceiros cantando com você?
A convidada especial deste disco é a querida
Mart’nália. A gente compôs juntas a letra de Na Cara por WhatsApp, e ela gravou
comigo quando esteve em Nova York. Ainda ganhei o seu vocal numa outra
composição minha, Raio. Amei ter a Mart’nália no disco.
A música Bolero, você diz, é você dançando
pelas ruas de Madri com um amor que deixou escapar. Há um texto em que você
escreve assim: “Nós dois dançando no escuro era como um sonho dentro de um
sonho. O mistério desse amor especial que poucos temos a sorte de encontrar…
Como se Pedro Almodóvar estivesse nos dirigindo em uma de suas maravilhosas
fantasias”. Puxa, isso parece forte mesmo, uma cena por si apaixonante.
Coisas que, de repente, parecem não serem mais possíveis de existir. Como você
está vivendo espiritualmente essa quarentena? Como ficam as paixões?
Sim, quando escrevi Bolero eu estava
terrivelmente apaixonada. Estar apaixonado sempre ajuda se temos que escrever
uma música. Assim como quando estamos com dor de cotovelo. O barato é que usar
experiências verdadeiras como as dessa música não deixa de ser um sonho. E se
deixar viajar neste momento de quarentena é pura inspiração… pois sonhar,
viajar, repensar e relembrar acontecimentos funcionam para você refletir e
depois decidir o que ainda é bom para sua vida e o que não é mais.
Algo mais pessoal sobre seu pai: você era
super ligada a João Gilberto. Como ficou o mundo, e o seu mundo, sem ele?
A minha relação com meu pai sempre foi muito
especial e intensa. Éramos muito próximos. É impossível explicar em poucas
palavras o vazio que eu estou sentindo, sem meu pai e minha mãe. O que me dá
força neste momento é focar do meu novo disco, na minha carreira.
Algo mais político: como está vendo a atuação
do presidente Jair Bolsonaro com relação sobretudo ao combate da epidemia?
É extremamente preocupante o que estamos
vivendo. Não consigo acreditar que o senhor presidente possa nos tratar com
tamanho desrespeito e desprezo. A cada dia fico com mais medo do futuro aqui no
Brasil, especialmente diante da forma como o governo vem lidando com a
pandemia. Essa falta de responsabilidade só faz aumentar a desigualdade no
país, que já era imensa. A população mais vulnerável é quem mais está sofrendo
com esse descaso e isso me entristece e revolta.
Onde acredita que seja melhor estar em tempos
de pandemia? Rio ou Nova York?
Na minha opinião, o melhor lugar para se estar
durante essa pandemia é dentro da sua própria casa e, depois de 20 anos morando
em Nova York, a minha casa nos últimos dois anos tem sido o Rio de Janeiro. Eu
realmente sou muito grata que o destino tenha me trazido de volta e que eu
tenha permanecido aqui neste momento, falando português, perto da minha
família.
Bebel, como andam as burocracias referentes à
obra de seu pai? Pergunto porque ela seguirá sendo um objeto de desejo de
consumo por muitas e muitas gerações, mas as rusgas familiares podem
infelizmente travar a divulgação de lançamentos, relançamentos e regravações.
Acha que em algum momento haverá um consenso familiar para que essa obra seja
liberada?
Este é um assunto que segue em segredo de
justiça, então não posso me estender muito. Meu objetivo sempre foi concentrar
todas as minhas energias para cuidar da saúde e bem-estar dele em vida, daí a
minha opção pela curatela. Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Porém, depois
da morte de papai preferi não ser inventariante neste processo, não me
interessava. Por isso, hoje em dia, não tenho menor controle do que vai
acontecer. Espero que tudo se resolva da melhor forma e que o mundo possa
voltar a usufruir da obra tão linda que meu pai deixou, e da maneira cuidadosa
que ele desejava.
Há pessoas com material inédito com medo de
mostrar isso e entrar em embates jurídicos com a família. Uma pena, porque
todos perdem, não?
Vamos torcer para que tudo se resolva e que todo
mundo possa ter acesso a todas as obras já existentes e também às que possam
futuramente vir à luz.