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“Eu ainda não conseguia explicar o que nos leva a emigrar com tanta força”

Sobre o romance, a autora Claire Adam respondeu às seguintes perguntas por e-mail

21/02/2021 11h29 - Atualizado há 3 anos Publicado por: Redação
“Eu ainda não conseguia explicar o que nos leva a emigrar com tanta força” Foto: Reprodução

Por que você quis contar essa história e como surgiu essa ideia? E era para ser uma espécie de thriller desde o início?

CLAIRE ADAM – A ideia da história surgiu de várias coisas. Primeiro, o pai, Clyde: ele chegou bem formado, punhos erguidos, pronto para lutar contra qualquer um que estivesse contra ele. Em segundo lugar, mais de 20 anos depois de deixar Trinidad, e depois de ver tantas outras pessoas deixarem Trinidad e lugares como Trinidad, eu ainda não conseguia explicar o que nos leva a emigrar com tanta força, a dar aquele enorme salto para o desconhecido. Claro, uma situação econômica específica pode ser sombria, mas o desejo parece ir mais fundo do que isso. Eu queria entender. Terceiro, meus irmãos e eu seguimos um caminho semelhante ao de Peter: estudamos muito para ganhar bolsas de estudo e ir para o exterior. Essas bolsas são uma parte fundamental de nossas vidas em Trinidad. Mesmo a pessoa mais pobre, a pessoa em circunstâncias mais humildes, tem uma chance real de oportunidade na vida por causa dessas bolsas. Eu não planejava escrever nada parecido com um thriller, não. Na verdade, eu odeio thrillers. Eu odeio como os personagens são descartáveis em thrillers: uma pessoa morta após a outra, e devemos achar que isso é prazeroso? Mas os capítulos de Paul no final se movem rapidamente e são bastante tensos, e há uma ameaça constante de violência, mas espero que o leitor esteja convencido da seriedade desses capítulos. Não são entretenimento, são um retrato sério de um menino em uma situação perigosa.

Sua história é sobre uma família que passa por uma situação extrema e tem que escolher entre dois filhos. Você tem filhos? Você conseguiu se ver na posição de Clyde? E Clyde nem sempre é um personagem fácil de gostar. Você ainda gosta do seu personagem e o respeita pela forma como ele lida com essa situação?

CLAIRE ADAM – Tenho filhos, mas não estava pensando em mim enquanto escrevia. Há uma certa sensação de liberdade no trabalho que o autor deve fazer, que é contar a história de outra pessoa. Não preciso me sentir culpada pelo que Clyde fez, ou defendê-lo, ou persuadi-lo a fazer algo diferente. Na verdade, tenho respeito por Clyde. Eu respeito todos eles. E sinto muito por eles também.

Parece-me que se houvesse mais diálogo entre as pessoas daquela família, a história seria diferente. Peter tenta discutir com o pai, mas ele não o escuta nem considera seus desejos e sugestões como uma opção. Ele também não está sempre aberto para o ponto de vista de Joy. A comunicação foi um problema para você aqui?

CLAIRE ADAM – Talvez. Mas esse problema tem uma origem muito específica: Clyde se considera o homem da casa. Todas as decisões são tomadas por ele; toda a responsabilidade recai sobre ele. Não sei se é assim, culturalmente, no Brasil, mas isso era, e presumo que ainda seja, muito normal em Trinidad, como em muitos outros países. Um dos críticos do Reino Unido que escreveu sobre Menino de Ouro descreveu Clyde como “o patriarca, cujo orgulho irá queimar sua pequena família”.

De repente, Paul surge como narrador e então a história se aprofunda e ganha mais ternura. Você considerou escrever também a partir de Joy e Peter?

CLAIRE ADAM – Na verdade, escrevi bastante do ponto de vista de Joy e Peter, mas no final achei que esses pedaços não faziam parte da história. Joy tem uma voz completamente diferente daquela com a qual Menino de Ouro é contada. Ela precisaria de um livro inteiro, todo contado na primeira pessoa, no dialeto de Trinidad, para conhecermos sua versão da história. Quanto a Peter, para mim, mesmo sendo irmão gêmeo de Paul, sempre houve um elemento de distanciamento. É como Clyde diz: é como se Peter já estivesse em outra ilha, mesmo quando é ainda uma criança vivendo com os pais. Além disso, Peter ganha a bolsa, ele sai de Trinidad, torna-se bem-sucedido – sua crise não vem enquanto ele está morando em Trinidad, ela chega mais tarde na vida. Você sabe, Peter vive seus últimos anos, seus 20, 30, 40 anos, como um gêmeo enlutado. É uma experiência muito particular, que precisa de um livro inteiro para dar a atenção que merece. O que estou dizendo é que teria adorado dar mais espaço a Joy e Peter, mas isso significaria escrever um livro diferente. No final das contas, senti que o coração deste livro em particular era sobre a luta entre Clyde e Paul.

Há violência externa no livro e medo, mas me parece que a questão central é a família. O papel que cada um desempenha na organização familiar, a busca por melhores condições do que as que nos foram dadas, a esperança de que a próxima geração supere nossas limitações financeiras e educacionais, a ideia de que os parentes devem permanecer juntos apesar da inveja, da ambição e da falta de afeto. Isso é também, e principalmente, uma reflexão e da paternidade. Clyde cuida de sua família com os recursos de que dispõe, de acordo com sua ideia rígida do que é certo e do que é errado. Quando ele é solicitado a fazer a escolha impossível, e enquanto ele lida com isso, devemos vê-lo como uma vítima do sistema? Ou como alguém que não conseguia ver que poderia haver outra saída se ele apenas pudesse ouvir os outros e se ele apenas tivesse pedido ajuda? O que você gostaria que esse pai soubesse antes de tomar sua decisão?

CLAIRE ADAM – Agradeço por esta leitura cuidadosa e ponderada. Acho que você está certa ao dizer que o livro levanta questões sobre família, paternidade/maternidade e as esperanças e expectativas que uma geração tem para a próxima. Se Clyde é uma vítima do sistema ou se, em certa medida, causou isso a si mesmo por ser teimoso e orgulhoso? Acho que a resposta é as duas coisas. Mas ele também é obstinadamente determinado e, à sua maneira, altruísta; e Trinidad não é simplesmente um lugar terrível dominado pelo crime; é também solidário, amante da diversão e sociável, com muitas pessoas boas, gentis e generosas. Clyde não é apenas uma coisa, ele é muitas coisas. Trinidad não é uma coisa, Trinidad é muitas coisas. Não é essa terrível ambiguidade o que torna nossas vidas tão confusas? As coisas nunca são tão simples como gostaríamos que fossem.

Há uma frase que Paul repete: ‘Lide com isso’. O livro, no fim das contas, é sobre como lidamos com a vida e como vivemos com as consequências de nossas escolhas?

CLAIRE ADAM – O que estava em minha mente quando escrevi os pensamentos de Paul nessas cenas era sua consciência de estar completamente sozinho. Ninguém estava vindo para ajudá-lo. A cavalaria não estava a caminho. Aquela frase repetida: ‘Handle it, handle it’, era como uma batida frenética em seus ouvidos, instruindo-o a recorrer a todos os seus recursos para se manter vivo.

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