‘O público é o meu termômetro’, diz cantora Alcione
Ao
longo de quase 50 anos de carreira, a maranhense Alcione nunca parou, mas já
estava há um bom tempo sem lançar um álbum de músicas inéditas – nos últimos
anos, ficou na estrada com o show Eu Sou a Marrom, de caráter retrospectivo,
para comemorar seus 70 anos. Nada que lhe cause ansiedade. A cantora sabe que
tem seu público consolidado – o qual, segundo ela, gosta de ouvir canções
românticas.
Não por acaso, são elas que dão o tom de seu novo trabalho, Tijolo por Tijolo
(em edição física e digital pela Biscoito Fino), título emprestado da canção
que abre o trabalho, de autoria de Serginho Meriti e Claudemir.
Em entrevista por telefone ao Estadão, Alcione conta que desenvolveu um jeito próprio
de selecionar as centenas de canções que recebe dos compositores, logo que
anuncia que está preparando um novo projeto. “Imagino a plateia cantando
comigo – esse é meu termômetro”, revela.
Usando esse critério, ela selecionou músicas de colaboradores antigos, como
Altay Veloso, Paulo César Feital, Roque Ferreira e Telma Tavares, e gravou
Jorge Vercillo pela primeira vez. Com saudade do palco, ela segue atenta ao que
acontece no País e no mundo. “Já passou da hora de o preconceito de cor e
de religião acabar. Todo mundo merece respeito”, diz, sobre os recentes
protestos nos Estados Unidos e no Brasil.
Tijolo por Tijolo chega sete anos depois de seu último trabalho com músicas
inéditas. Por que demorou tanto tempo?
Tem que demorar! Não posso dar minha cara, todo ano, por aí com um novo
trabalho. Lanço algo, deixo o repertório ecoar, faço bastante shows. Aliás,
como eu amo cantar ao vivo, estar com o público. Ando com muita saudade de um
palco. No começo da carreira, era obrigatório lançar um disco por ano. Mas,
agora, não preciso disso.
Na época do lançamento do single com a canção que dá nome ao disco, você disse
que ela representava muito sua carreira. Teve de batalhar muito?
Sim, tudo foi feito com batalha. Outro dia, achei uma foto em que eu estava no
programa do Bolinha (o apresentador Edson Cury, morto em 1998). Fiz tudo quanto
foi programa de TV, ia a todas as emissoras de rádio. Bati perna de norte a sul
do País. Valeu a pena.
Como você escolhe o repertório?
Os compositores me mandam – hoje vem via WhatsApp – e eu ouço exatamente tudo.
O que me guia na escolha é o meu instinto, algo que desenvolvi ao longo da
carreira. Sei o que vai pegar o público. Ouço e imagino a plateia cantando
comigo – esse é meu termômetro.
O álbum é constituído essencialmente por músicas românticas. É o que você tem
preferido cantar?
Sim, e é o que meu público gosta de ouvir.
No disco há uma canção em homenagem ao Pelé, chamada O Homem de Três Corações.
Vocês são amigos?
Pelé é um ídolo para mim. Fiquei muito feliz de fazer essa homenagem para ele.
Quando o Altay Veloso (o autor, ao lado de Paulo César Feital) me mandou a
música, logo gravei uma versão voz e violão e enviei para o Pelé. Ele adorou,
me mandou um vídeo para agradecer.
Foi uma encomenda sua?
Não, Altay mandou para mim. Em toda a minha carreira, só duas músicas foram
feitas por encomenda (segundo ela, obrigada e Estrela Luminosa). O resto veio
até mim. Veja, Não Deixe o Samba Morrer caiu no meu colo, foi um sucesso e
virou uma marca minha. Nada foi encomendado.
Em abril, o rapper americano Snoop Dogg publicou um vídeo ouvindo uma música
sua, Você me Vira a Cabeça. O que achou quando viu?
Comigo acontecem coisas do arco da velha (risos). Vê se pode! Quando eu
imaginei que ele ouvia minhas músicas, que tinha algo com o meu trabalho?
Admiro-o muito. Foi engraçado vê-lo curtindo aquele charutão com a minha música
ao fundo.
Você gravou uma canção chamada Em Barco que Navega Malandro, Não Navega Mané
(de Serginho Meriti e Claudemir), que brinca com a ideia de quem é mané, de
quem é malandro. Tem muito “mané” no Brasil?
Ah, tem! Esse presidente da Fundação Palmares (Sérgio Camargo, que, durante uma
reunião, classificou o movimento negro como “escória maldita”,
conforme revelou o Estado), por exemplo, é um mané. Ele nem merece que eu fale
nele. Não peço justiça para ele, peço clemência. Se tem um Deus lá no céu,
(ele) não há de ficar impune.
Você é espiritualizada. Como analisa o que está acontecendo no mundo
atualmente?
Eu respeito e obedeço ao sagrado. Acredito em Deus e sou da umbanda, filha de
Xangô e Iansã. É bom acreditar em algo superior para não andar nas trevas. Tudo
o que está acontecendo, essa pandemia, veio para nos ensinar algo.
Alguma coisa vamos aprender.
Os seguidores da umbanda dizem que este ano é de Xangô. O que isso significa?
É um ano em que a pessoa tem que cuidar de si, da família e dos amigos. Veja o
que aconteceu nos Estados Unidos, essas marchas (uma reação à morte do
ex-segurança George Floyd). Os policiais ajoelhando e se confraternizando com
os manifestantes. Isso é Xangô! E as injustiças que acontecem lá também ocorrem
aqui no Brasil. Já passou da hora de o preconceito de cor e de religião acabar.
Todo mundo merece respeito.
O Miguel Falabella estava escrevendo um musical chamado Marrom para comemorar
seus 50 anos de carreira. Como anda o projeto?
Está em construção. Espero que essa pandemia não atrase tudo (Alcione diz não
poder revelar quando será a estreia). Falabella é um craque e vai fazer um
lindo trabalho ao lado do Jô Santana (produtor do espetáculo). Não
participarei, apenas vou assistir. Será um pouco estranho ver minha vida e
carreira no palco, mas acho esse projeto magnífico.
Existe uma fita demo que você fez em 1972 para a gravadora Eldorado, antes de
sua carreira se consolidar. Nela, você canta músicas como Yesterday, Bebete
Vãobora e Travessia. O produtor Thiago Marques Luiz tem um projeto de lançar
essa gravação. O que você acha?
Eu lembro de ter gravado, fiquei honrada com o convite da Eldorado. Na época,
eu era cantora da noite, mostrei tudo o que sabia fazer. Mas não acho que esse
material tem que ser lançado agora. Essa gravação não representa o que eu sou
hoje, a cantora que me tornei.