Em cidades do interior ou em regiões onde o suporte psicológico e a orientação digital são mais escassos, essa dinâmica se torna ainda mais preocupante
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Apostas Esportivas tem investigado as irregularidades do setor, enquanto o governo avança com medidas para restringir o acesso de populações vulneráveis a bets, incluindo o bloqueio de CPFs de beneficiários do Bolsa Família. A CPI marcou para esta semana as oitivas do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, e da influenciadora Deolane Bezerra.
Juliana Maia Daniel, sócia do Berardo Advogados, especialista no assunto, destaca que a regulamentação das bets são são particularmente importantes em cidades do interior, como São Carlos, onde o acesso digital é amplo, mas a estrutura de fiscalização e prevenção é limitada. Nesses contextos, os riscos são potencializados — famílias com renda limitada são mais impactadas por perdas financeiras, e adolescentes muitas vezes apostam sem qualquer barreira real.
Em cidades do interior ou em regiões onde o suporte psicológico e a orientação digital são mais escassos, essa dinâmica se torna ainda mais preocupante. É comum vermos adolescentes apostando durante o intervalo das aulas, influenciados por redes sociais ou influenciadores digitais. A sensação de que “todo mundo está ganhando dinheiro fácil” vira um gatilho de entrada no vício, e o problema cresce de forma silenciosa.
SUPERVICIANTE
Juliana explica que o jogo de apostas on line é muito viciante porque as plataformas de apostas online são projetadas para estimular o comportamento compulsivo. “Elas operam com reforços constantes, promessas de ganhos rápidos e múltiplas possibilidades de aposta por minuto — tudo acessível a partir de um celular. A sensação de controle (como apostar com base em “estatísticas” ou palpites) é ilusória, mas eficaz para prender o usuário”.
A jurista explica que esse é um fator que diferencia as bets de jogos mais tradicionais, como o bingo. Enquanto o bingo tem uma dinâmica mais lenta e baseada na sorte, as bets online têm maior velocidade e disponibilidade de jogo (acessíveis 24h por dia, por celular, com jogos em tempo real e a possibilidade de apostar em múltiplos eventos simultaneamente – inclusive dentro de uma mesma partida, como “quem faz o próximo gol”); e são muito “gamificadas”, oferecendo bônus, desafios diários, programas de fidelidade e notificações constantes, o que cria um sistema de recompensas que mantém o usuário engajado.
“Há, ainda, um elemento de economia comportamental utilizado pelas empresas, em que os aplicativos (incluindo notificações) aprendem sobre o comportamento do usuário e maximizam o vício para aquela pessoa. Essa combinação entre frequência alta, acesso e reforços constantes tornam as bets mais viciantes, especialmente para jovens”, pondera.
Em cidades do interior ou em regiões onde o suporte psicológico e a orientação digital são mais escassos, essa dinâmica se torna ainda mais preocupante. É comum vermos adolescentes apostando durante o intervalo das aulas, influenciados por redes sociais ou influenciadores digitais. A sensação de que “todo mundo está ganhando dinheiro fácil” vira um gatilho de entrada no vício, e o problema cresce de forma silenciosa.
AVANÇOS
Segundo ela, a regulamentação atual das apostas esportivas online já prevê a necessidade de empresas autorizadas a operar atenderem a determinados requisitos técnicos, tais como pagamento de tributos, regras de publicidade e patrocínio (inclusive com vedação a peças que incitem comportamentos irresponsáveis), exigência de canais de atendimento ao usuário, controles contra lavagem de dinheiro e proibição de apostas por menores.
“Apesar desses avanços, faltam instrumentos mais eficazes de monitoramento, fiscalização e proteção social. Hoje, por exemplo, não há sistema nacional de autoexclusão unificado, não existem limites obrigatórios de tempo ou valor de apostas, e a publicidade ainda circula com pouca supervisão efetiva, inclusive nas redes sociais. Além disso, a integração de dados com cadastros sociais (como Bolsa Família) para impedir apostas por beneficiários ainda é apenas proposta — não foi implementada. A fiscalização sobre plataformas estrangeiras também enfrenta obstáculos técnicos e jurídicos, o que pode abrir brechas para a operação irregular. Uma outra solução do ponto de vista jurídico seria, por exemplo, a criação de fundos destinados à prevenção e tratamento do vício” afirma ela.
A oitiva do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, reforçou a preocupação com movimentações financeiras atípicas em plataformas de apostas. O BC está atento à necessidade de integração entre sistema financeiro, Receita e Coaf para mitigar esses riscos, o que pode proteger também pequenos comerciantes da região que, sem saber, podem ser envolvidos em movimentações ligadas a esquemas de bets ilegais.
CRIAÇÃO DE “FREIOS”
Juliana destaca que há como criar freios jurídicos para estas epidemias de bets, mas não podem ser esforços isolados. “É necessário implementar uma efetiva política pública para reduzir essa epidemia, que combine regulamentação, monitoramento e apoio aos usuários. Algumas das soluções já foram previstas em regulação, como transparência sobre as chances reais de ganho e proibição de marketing focada no enriquecimento rápido. Mas o Brasil pode se inspirar em modelos estrangeiros e adaptar soluções de impacto, como sistemas centralizados de autoexclusão (em que o usuário pode se bloquear voluntariamente de todas as plataformas) e limites obrigatórios de tempo e valor de apostas por faixa etária”.
Além disso, de acordo com ela, é essencial reforçar a regulação local e a fiscalização em âmbito estadual e municipal. Muitos dos problemas associados às apostas digitais se materializam nos municípios: dívidas familiares, evasão escolar, golpes entre amigos e familiares, pequenos estabelecimentos sendo usados como “caixas” informais. Uma regulação mais presente no dia a dia das cidades e um mecanismo local de apoio e monitoramento pode ajudar a conter essa escalada.