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Movimento social e movimento das palavras

03/07/2013 16h22 - Atualizado há 12 anos Publicado por: Redação
Movimento social e movimento das palavras

As palavras não conservam o mesmo status no curso do tempo: a tendência é transformarem-se morfologicamente e, também, semanticamente. Algumas ganham notoriedade conforme o contexto econômico, político e social.

 

Algum leitor deve estar pensando no atual movimento social brasileiro e catalogando exemplos: reivindicação, passeata, quebra-quebra, polícia, vandalismo. E não está errado, mas esses são termos cujo significado evoca coisa concreta, menos simbólica. Não sei se alguém já pensou, mas gostaria de citar, pelo menos , mais duas: cegueira e coceira, ambas começando com a letra c  e também associadas pela rima. O que nos levaria a pressupor um enigmático parentesco.

Resta, então,  explicar a ligação delas com o amplo movimento social de nossos dias. Como acabei de ler “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago – e o conteúdo do livro tem muito a ver com a atual situação -, vamos começar com o problema de visão. A eclosão do movimento deixou, e ainda deixa, muita gente perdida. Há quem pergunte sobre os motivos de tal explosão; há quem especule sobre a prioridade deles; outros o avaliam como algo passageiro, sem maiores consequências; e , ainda, uma parcela que o considera como atuação de baderneiros para complicar ainda mais a vida atual, principalmente nas grandes cidades. E haverá sempre quem interprete como sendo a atuação de quem busca a oportunidade de tirar proveito da situação. Tudo conforme atuam as personagens de Saramago.

Embora a cegueira esteja há tempo inoculada na maioria da população, só agora a palavra ganha relevo, notoriedade – fruto da evidência do movimento social. E haverá sempre quem aproveite o momento para dizer que há muito tempo tinha consciência dos problemas, que comentava com outros , mas que ninguém acreditava nele. Pode ser verdade, mas pode ser também desculpa para justificar a própria omissão. O fato é que praticamente todos nós somos afetados por esta miopia, até que a confluência de muitos incômodos acabe com a nossa letargia.

E o contraponto – a coceira? Também já vem de longe, mas de maneira latente. Na forma de uma coceirinha, às vezes até prazerosa, mas que constitui um aviso de que algo vai acontecer—cuja antevisão a cegueira ainda impede. Mas o prurido vai se repetindo, acentuando, a ponto de aflorar no corpo inteiro, perturbando e exigindo uma movimentação desordenada, intensa e incontrolável. Agora, a agitação incomoda o organismo inteiro. A variedade dos pontos afetados não permite a sobriedade de comportamento de quem é atingido – no caso, praticamente  toda a sociedade. E todos passam a desejar que a latência dos desarranjos sociais se transforme em patência de um movimento social sólido e eficaz. Espero que o neologismo que criei (patência) seja símbolo dos meus anseios e que aumente a nossa clarividência sobre os rumos que o país deve tomar.

 

 

(*) O autor é professor de português e revisor de textos

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