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Megarrebelião comandada por Sombra completa 20 anos

Em duas décadas, crime organizado paulista se consolidou, segundo análise de Gabriel Feltran, professor da UFSCar e pesquisador do tema

19/02/2021 08h09 - Atualizado há 3 anos Publicado por: Redação
Megarrebelião comandada por Sombra completa 20 anos Fotos: Arquivo Josmar Jozino / Reprodução – Superinteressante - Facções

No dia 18 de fevereiro de 2001, o Primeiro Comando da Capital (PCC) foi apresentado ao Brasil e ao mundo. Idemir Carlos Ambrósio, o ex-garçom de São Carlos comandou, do “Piranhão”, apelido da Casa de Custódia de Tratamento de Taubaté, onde estava encarcerado, uma megarrebelião, que envolveu 29 unidades prisionais e contou com a adesão de 27mil detentos. O saldo de tal evento foi sangrento: 16 presos assassinados e dezenas de feridos. Sombra usou o telefone celular para comandar o motim. A demonstração de força não havia sido a primeira, mas foi a que revelou a triste realidade para o Brasil: as cadeiras de São Paulo estavam dominadas pelo crime organizado. O segundo grande evento do PCC viria em maio de 2006 com o “Salve Geral”, que resultou na morte de quase 50 policiais e centenas de moradores da periferia. Mas Sombra não viveria para viver este segundo megaevento. Ele foi enforcado no próprio Piranhão, aos 41 anos cinco meses depois do motim de fevereiro de 2001. Nesta entrevista exclusiva, o professor da UFSCar e escritor, um dos maiores pesquisadores do tema crime organizado, Gabrel Feltran, fala desta guerra civil não declarada que parece não ter data para terminar.  Ele é autor de “Irmãos, uma História do PCC”.

PRIMEIRA PÁGINA – A rebelião de 18 de fevereiro de 2001 envolveu 29 unidades prisionais de SP e apresentou o PCC ao mundo. Como o senhor vê este episódio na história do crime organizado no Brasil? Foram 17 mil detentos amotinados com 16 execuções.

GABRIEL FELTRAN – É um episódio central na história do crime no Brasil, e particularmente na história do PCC. Além da grande quantidade de vítimas, o episódio fica marcado pela primeira grande aparição pública do PCC, que tinha nascido em 1993 mas que a grande imprensa e as autoridades preferiam ignorar. Depois de fevereiro de 2001, não foi mais possível.

PP – Porque o PCC usa a decapitação de inimigos como um ritual e como uma marca do grupo?

GF – Esse terror, essa violência extrema, é característica de situações de guerra, quando o outro é desumanizado e tratado como uma coisa. Essa alteridade radical já foi observada em muitas situações de guerra, e muitos autores já trataram dela (ver por exemplo “A guerra não tem rosto de mulher”, de Svetlana Aleksiévitch, que estou lendo agora inclusive). Na “época das guerras” nas periferias e cadeias, esse terror aparece não apenas com o PCC, mas em muitas outras situações. Em períodos de “bandeira branca hasteada”, o PCC é muito mais conhecido por sua capacidade de fazer alianças internas ao mundo criminal, do que a partir de cabeças cortadas. Comentei um pouco sobre isso numa matéria há uns anos atrás (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/08/04/cabecas-decapitadas-corpos-carbonizados—o-que-esta-por-tras-da-violencia-extrema-na-guerra-de-faccoes.htm ).

PP – Qual evento foi mais importante para o crime organizado: a megarrebelião de fevereiro de 2001 ou o Salve Geral em 2006?

GF – Ambos marcam a história do crime e do PCC no Brasil de maneiras diferentes. A Mega de 2001 foi o nascimento público do PCC, e as consequências dos eventos para a facção produzem uma revolução interna, como trabalho no meu livro “Irmãos”. Nessa transformação, o PCC deixou de se organizar em estrutura piramidal e com lideranças personalizadas. Isso foi decisivo na história da facção, seu momento mais relevante. Em tamanho, no entanto, os eventos de maio de 2006 são ainda mais impressionantes. Em 2006, mais de 90 unidades prisionais e de internação de adolescentes se rebelaram ao mesmo tempo, 45 policiais foram mortos nas ruas e a reação das forças da ordem deixou ao menos 496 mortos nas periferias. A partir das transformações que se seguiram a fevereiro de 2001, e a maio de 2006, a reflexão interna ao PCC fez notar que a facção se beneficiaria muito mais ao trabalhar na sombra, sem muito alarde, e conquistando mercados ilegais (o mercado transnacional de cocaína passa, mais tarde, a ser o mais lucrativo no mundo criminal). Por isso a facção cresce tanto ainda hoje, já atuando em cinco continentes.

PP – Em que o PCC se diferencia da Costa Nostra, da Yakuza, da Máfia Russa ou dos Carteis Colombianos ou Mexicanos?

GF – A forma de liderança no PCC não é personalizada, como nessas outras organizações criminais. O poder não é da pessoa, mas da posição. Muitos pensam que o PCC é uma empresa, mas ele é muito mais uma sociedade secreta de muitos empresários do crime, uma “maçonaria do crime”, para facilitar a compreensão. Nenhum irmão é, em princípio, maior que outros; mas há posições de honra, conquistadas pela caminhada de cada um no crime, que são posições de responsabilidade. Assim, se qualquer um, em posições mais altas ou mais baixas, pode ser questionado quanto ao seu proceder e é essa busca por um proceder correto, nos parâmetros internos ao crime, claro, que faz com que as reputações e os poderes se distribuam. Isso é diferente de todas as outras organizações criminais brasileiras, e também as estrangeiras que conheci. E sem dúvida, essa estratégia favorece o crescimento rápido da facção.

PP – Na sua opinião, Sombra foi o maior bandido da história de São Carlos? Por que ele foi morto?

GF – Da história recente, sem dúvida é o mais famoso. Sombra foi morto em situação controversa, meses após a Mega de 2001, justamente nesse período de “revolução interna”, em que o PCC passava por transformações muito relevantes. Mas não conheço detalhes sobre a morte dele.

PP – Como seria possível combater o PCC de forma a extingui-lo?

GF – Termino o meu livro “Irmãos” dizendo que a forma “sociedade secreta” de organizar o poder é mais antiga do que a forma “Estado”. O problema ainda é mais grave quando as nossas políticas de segurança são focadas em prender pequenos operadores de grandes mercados (drogas, armas, veículos roubados, contrabando). Esses pequenos operadores, na cadeia, fortalecem as facções, que nasceram e cresceram dentro delas. Se não revisarmos toda nossa política de segurança, focando na diminuição e controle dos mercados ilegais, seja por regulação estatal ou mercantil, associada à proteção social dos que são fortemente explorados nesses mercados (até morrerem, literalmente), vai ser difícil.

PP – Em 20 anos o que mudou no sistema prisional paulista?

GF – Como já era de se esperar, nesses 20 anos o sistema prisional que tinha sido integralmente reformado e reconstruído, se deteriorou enormemente. Desde o século 18 as prisões são reformadas para serem novamente reformadas em seguida, sempre na direção de mais punição e disciplina, e sempre caem no mesmo lugar: superlotação, reprodução de grupos criminais, corrupção sistêmica. O sistema prisional paulista passou de 45 mil presos no início dos anos 1990, quando começaram as reformas, para 230 mil presos nos últimos anos. Produzimos mais de 1,3 milhão de ex-presidiários, que somados às suas famílias, são mais de 10% da população do estado. Um sistema desse tamanho consome rios de dinheiro público, evidentemente apropriado por muita gente – que participa de licitações e fornece serviços e que não quer que ele diminua, ao contrário. Nesse jogo infernal, fortaleceu-se a hegemonia de uma só facção no estado todo, o PCC, e a corrupção sistêmica faz com que muito dinheiro transite dos cofres públicos e dos mercados ilegais para os mercados de proteção. A nossa política de segurança, que não pensa em outra coisa se não em prisão e guerra, fez água. Mas continua-se apostando na mesma política, agora mais radical. Vai continuar fazendo água, e derramando sangue.

PP – Esta “guerra civil” não declarada pode um dia acabar?

GF – Quando eu era criança em São Carlos, nos anos 1980, morava na Padre Teixeira com um murinho de 80 cm de altura. A casa em que eu morava hoje tem um arame farpado em espiral. Uma das 20 melhores cidades do Brasil para se viver está assim, cheia de condomínios fechados e vivendo com medo. Imaginemos como está os lugares mais pobres do Brasil, que tem mais de 5 mil municípios. Se parássemos para pensar, e trabalhássemos baseados em evidências, e não em ideologias, teríamos alguma chance. Do jeito que está, e do jeito que vai, com certeza teremos ainda décadas de 60 mil assassinatos por ano no país, se não mais. E de grades cada vez mais altas dos condomínios, de alambrados e arames farpados em espiral. Não é uma boa escolha.

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