A obra artística está acima da biografia do autor
“A obra é uma coisa; o homem, outra. Não misturem as duas”
Azuaite Martins de França*
Tive a oportunidade de assistir neste mês de dezembro, em São Paulo, ao show de Caetano Veloso e Maria Bethânia, por sinal um belíssimo show. Alguns dias antes, no entanto, uma conversa me chamou atenção. Mencionei a genialidade de artistas como Caetano, Bethânia, Chico Buarque, Gilberto Gil e tantos outros. A pessoa com quem conversava, em tom firme, declarou: “Odeio esses artistas!”.
Surpreso, questionei a razão de tamanha rejeição, e a resposta foi imediata: “Por causa das posições defendidas por eles. Eles são de esquerda, eu não sou”. Observo que essa postura não é rara, infelizmente. Para muitos, o posicionamento político de alguém se torna um divisor que contamina até mesmo o apreço pela arte ou pela contribuição cultural.
Essa visão me fez recordar as lições que recebi em minha formação em Letras Germânicas, onde estudei línguas e literaturas inglesa e alemã. Tive o privilégio de aprender com grandes professores, muitos deles comunistas e exilados do regime ditatorial de Portugal. Nos efervescentes anos finais da década de 1960, nós, alunos, militávamos na esquerda, admirávamos autores com quem compartilhávamos ideias políticas e, às vezes, rejeitávamos outros por discordarmos de suas posições.
Mas os professores nos advertiam sabiamente: “A obra é uma coisa; o homem, outra. Não misturem as duas”. Era um alerta contra o sectarismo e o erro de julgar a produção artística ou intelectual com base apenas na biografia ou nas preferências pessoais de seus criadores. Shakespeare, Goethe, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Virgílio… Sabemos pouco sobre suas posições políticas, mas o valor de suas obras transcende qualquer rótulo.
Esse mesmo raciocínio vale para a política. Como vereador, votei contra a mudança da estrutura administrativa da Prefeitura de São Carlos. Contudo, reconheço um ponto positivo na reforma: a transferência da responsabilidade pela merenda escolar da Secretaria de Agricultura para a Secretaria de Educação, algo que sempre defendi. É preciso ter maturidade para reconhecer méritos, mesmo em iniciativas de que discordamos no geral.
Assim como as roseiras têm espinhos para proteger as rosas, não podemos rejeitar as flores apenas por causa de suas defesas naturais. Na arte, na política e na vida, precisamos ultrapassar o maniqueísmo e o facciosismo. Devemos valorizar as ideias, as obras e os gestos, mesmo que não concordemos integralmente com quem os realiza.
Essa é uma lição que carrego comigo e que acredito ser essencial para nossa convivência e evolução enquanto sociedade. Afinal, superar os espinhos do sectarismo nos permite apreciar plenamente a beleza das rosas. Que essa reflexão nos acompanhe, hoje e sempre.
*Azuaite Martins de França é vice-presidente do Centro do Professorado Paulista