“As facções avançam pelo mercado e não pelo Estado”, afirma especialista
, Feltran não vê em grupos organizados como PCC e CV o objetivo de eleger deputados e prefeitos, como queriam Pablo Escobar e Dom Corleone
Embora tenha ações voltadas para a área política para buscar benefícios, principalmente jurídicos, o crime organizado brasileiro não vê a política como um trampolim para seu avanço. As estratégias para o avanço estão voltadas para o mercado ilegal, voltado ao comércio de drogas, veículos roubados, armas e munições e contrabando em geral, inclusive de cigarros. A análise é do professor da UFSCar, Gabriel Feltran, autor de “Irmãos, uma história do PCC”.
PRIMEIRA PÁGINA – Houve interferência no crime organizado nas eleições municipais em 2020?
GABRIEL FELTRAN – Há alguns anos temos pesquisado os mercados ilegais – drogas, veículos roubados, armas e munições, contrabando, etc.
Tem ficado cada vez mais evidente, nas pesquisas, que esses mercados não são residuais no Brasil, mas estruturantes de setores importantes da economia formal.
Consumo com dinheiro obtido ilegalmente, além de vários outros mecanismos de lavagem de dinheiro e de empresariamento, fazem com que dinheiro ilegal se torne dinheiro legal.
Sabemos da influência de grandes empresários na política, traficando influência, influenciando campanhas, achacando fundos públicos etc. A Lava-Jato deixou isso ainda mais claro.
Na minha leitura, no caso de empresários que acumularam com mercados ilegais, criminais, não é diferente. Há influência do poder econômico ilegal nas eleições municipais, em muitos lugares do Brasil. Alguns municípios da Região Metropolitana de São Paulo denunciaram essa influência direta, nessas eleições. Mas isso está muito mais espalhado do que se pensa.
PP – Quais organizações criminosas buscam interferir na política?
FELTRAN – Eu diria que empresários criminais, mais do que suas organizações, buscam interferir na política institucional.
Quando se monta um esquema de desvio de dinheiro público, de favorecimento em licitações ou de corrupção de agentes públicos, quem faz isso são redes empresariais daquele ramo. E não suas organizações empresariais, no caso das elites, ou suas facções criminais, nas periferias.
PP – As eleições municipais estão mais suscetíveis a estes ataques?
FELTRAN – Nos municípios, pela escala, essas influências são mais visíveis. Mas de novo recorrendo ao exemplo da Lava-Jato, ou às investigações federais sobre redes de milicianos e facções criminais, fica claro que ações criminais organizadas para atacar os fundos públicos acontecem também nas esferas estadual e plano federal.
PP – Michael Corleone, personagem de Mario Puzo, queria que seu filho fosse político. Pablo Escobar se elegeu deputado. O poder político é o “algo mais” que o crime organizado pode galgar?
FELTRAN – No caso das facções criminais brasileiras, PCC, CV e outras, não vejo essa tendência. A intenção de seus integrantes, quando acessam lateralmente redes da política, é sobretudo a de instrumentalizar leis e posições estatais para conseguir benefícios aos seus negócios. A estratégia de crescimento das facções é pelo mercado, não pelo Estado. Caso esses empresários criminais acumulem tanto, a ponto de se tornarem tão ricos e influentes como as elites tradicionais, e tradicionalmente corrompidas do Brasil, aí poderia ser o caso. Porque essas elites organizam ataques aos fundos públicos há séculos, e os partidos políticos são um caminho para isso. Grupos milicianos bem estabelecidos já fazem essa relação com a política há tempos, temos muitos exemplos hoje em pauta.
PP – A massa carcerária tem família e amigos. Este contingente de pessoas forma um número muito grande de eleitores. Existem evidências de que o crime organizado já estaria negociando estes votos ou elegendo parlamentares e prefeitos com este eleitorado?
FELTRAN – Não vejo evidências disso. No Brasil, são encarcerados os pobres dos pobres. Nessas eleições, vimos o voto popular se dividir, e normalmente o parente preso não tem tanta influência assim sobre o voto dos seus familiares. De toda forma, temos 800 mil presos no país, e suas famílias comporiam 5 milhões de pessoas. No estado de São Paulo temos 1 milhão de ex-presidiários. Produzindo essa massa populacional, sem dúvida ela pode se comportar como massa. O que deveríamos fazer é mudar completamente nossa política de segurança, tirando a guerra sangrenta e o encarceramento de seu centro, e passando a regular com inteligência os mercados ilegais.
PP – Recentemente houve a morte de um grupo de milicianos pela Polícia, o que não é tão comum. Na sua opinião, isso marca uma mudança no tratamento da polícia a estes grupos ou foi “queima de arquivo”?
FELTRAN – Não acompanhei tanto esse caso, embora seja realmente estranho. Parece-me mais uma disputa interna dos mercados de proteção, do que uma mudança de postura. Sempre que existe um mercado ilegal, associa-se a ele um mercado de proteção.
PP – Recentemente voltamos a ver assaltos com cenas de cinema, como na última semana e nesta em Araraquara, Gavião Peixoto e Criciúma. O PCC está fazendo caixa ou são quadrilhas independentes agindo?
FELTRAN – Normalmente são quadrilhas independentes, com membros de várias cidades e estados, comumente que se conheceram na cadeia. São efeitos colaterais do mega-encarceramento, desse modelo equivocado de fazer segurança pública, pautada na guerra. Para ver quem é mais macho: polícia ou bandido. Isso é feito há 40 anos ano Brasil, e nossa sensação de insegurança só tem piorado. Antes tínhamos muros baixinhos, agora estamos atrás de arames farpados de campo de concentração. E continuamos acreditando nesse modelo…
PP – Pensa em escrever algum novo livro sobre o tema?
FELTRAN – Não imediatamente, mas esse é um tema muito importante, que merece pesquisas futuras. Atualmente, estamos para lançar nosso livro sobre o mercado de veículos roubados no Brasil. Vai sair primeiro em inglês, mas esperamos publicar em português ainda no ano que vem.