Câmaras de 17% das cidades brasileiras não terão vereadora
O número de cidades é maior ainda do que o registrado em 2016, quando 1.292 câmaras municipais ficaram sem representatividade feminina
Apesar de as candidaturas de pautas identitárias – em defesa de grupos LGBT, feministas, antirracistas ou de povos indígenas – avançarem, a falta de representatividade ainda é realidade em boa parte dos municípios brasileiros. Levantamento feito pelo Estadão mostra que quase uma em cada cinco cidades do País – ou 931 municípios (17% do total) – não elegeu nenhuma vereadora neste ano.
O número de cidades é maior ainda do que o registrado em 2016, quando 1.292 câmaras municipais ficaram sem representatividade feminina. Segundo especialistas, a cota de 30% de candidatas ajudou a conquistar mais espaço, mas ainda falta investimento e apoio das siglas.
Em Cotia, Carolina Rubinato (PSOL), de 38 anos, bem que tentou quebrar a sequência de 32 anos sem eleger uma só mulher no município. Ela uniu forças com outras quatro para lançar o Mandato Coletivo Feminino. Mas, relata, esbarrou no machismo e na falta de investimento do partido.
“Ganhamos R$ 1.425, que foram depositados uma semana antes da eleição. Não deu tempo nem de rodar papel. Nós mesmas bancamos a impressão do folheto, os cartões e as redes sociais”, disse Carolina, que é especialista em política empresarial e pública para mulheres. Ainda que com poucos recursos, ela foi a que teve maior votação entre as mulheres: ao todo, 1.052.
O resultado de quatro décadas de um Legislativo composto só por homens é a falta de políticas para mulheres em áreas como saúde e educação, segundo Carolina. “Eles não têm o olhar da necessidade da mulher. Por isso, a paridade de gênero é importante: para que as políticas atinjam a todos.”
Na Grande São Paulo, Cotia não é exceção: outras nove cidades também não tiveram mulheres eleitas, quase 30% de toda a região. Carapicuíba e Embu das Artes ficaram de fora do levantamento, pois o resultado da eleição ainda não foi validado pela Justiça Eleitoral.
Mesmo com as cotas, as candidaturas femininas tiveram crescimento tímido. Parte da explicação tem a ver com a formação da cúpula dos partidos, que por ser majoritariamente masculina e branca, prioriza candidatos homens, segundo a cientista social Beatriz Della Costa Pedreira, diretora e cofundadora do Instituto Update. “As pessoas eleitas refletem o sistema interno partidário, que não é democrático. As mulheres não conseguem vencer essas barreiras, porque elas não têm apoio, inclusive financeiro, dos partidos.”
Sempre houve resistência por parte das legendas em cumprir a lei de cotas, que não é apenas incluir mulheres em condição de candidatura, mas com chances reais de serem eleitas, diz a cientista política Malu A. C. Gatto, professora da University College London. “Para que isso seja possível, elas não somente precisam estar na lista de concorrentes, mas ter acesso a recurso e a apoio partidário.”
Nas últimas eleições, as siglas começaram a respeitar mais a lei em termos de proporção de candidaturas, diz Malu. Mas a maioria não tem passado dos 30% exigidos. “A cota se tornou um teto, em vez de um piso”, diz a especialista. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nenhum partido lançou mais mulheres do que homens nas eleições 2020. O que mais se aproximou da paridade foi a recém-criada Unidade Popular (UP), com 43,28% de candidatas. Em seguida, vem o PSTU (38,94%).
A sub-representação também afeta pretos e pardos, que são a maioria da população. Este ano, 766 municípios não elegeram vereadores pretos ou pardos. Mas, em comparação com 2016, houve uma conquista de 277 cidades. Campina Grande, na Paraíba, é uma delas. Lá, a assistente social Jô Oliveira (PCdoB), de 39 anos, será a primeira negra a ocupar uma cadeira na Câmara.
Sua candidatura vinha sendo construída desde 2016, quando ficou como suplente. Em um município onde famílias tradicionais dominam a política, Jô fez uma campanha de poucos recursos, mas com mobilização social. Recebeu o fundo partidário e o recurso da cota racial do partido, só que nas duas últimas semanas. Em comparação com adversários, que arrecadaram quase R$ 200 mil, ela obteve R$ 13 mil. “Quem tem mais dinheiro tem mais tempo para estar na rua, mais pessoas para pedir votos, equipes de redes sociais. Os recursos são primordiais. Mas, o que eu não pude pagar, tive pessoas que ajudaram.”
Da construção do programa de mandato até começar a pedir votos, Jô teve a ajuda de movimentos como o das mulheres e o da juventude. Isso a levou a conseguir 3.050 votos. “É uma conquista importante enfrentar essa estrutura. Conseguir um mandato marca um espaço. Mas ainda temos muito o que avançar.”
A cientista política Ana Claudia Farranha, professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB), diz que é importante que espaços como a câmara municipal representem a diversidade do País. “Quanto mais a gente tiver o espelhamento da sociedade nas instâncias representativas, ela estará mais próxima da realidade da sociedade.”
A redução da desigualdade vai ao encontro da determinação de um critério racial na divisão de recursos do Fundo Eleitoral. O TSE decidiu, em agosto, que a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita devem ser proporcionais ao número de candidatos negros do partido. Apesar de o plenário ter entendido que a medida deveria valer a partir de 2022, o Supremo Tribunal Federal antecipou a regra para este ano.
A eleição mostra que candidaturas de pautas identitárias avançaram, mas ainda não são maioria. “Sabemos que 81,7% dos novatos são homens e 52,7%, brancos e brancas. Pretos e pretas são 6,58%”, diz Malu Gatto. Ela explica que, ao se analisar gênero e raça, as mulheres pretas continuam sendo minoria, com apenas 1,02% de eleitos. “Houve ganhos. Mas é um espaço que vem sendo conquistado lentamente e carregando com ele essas desigualdades sociodemográficas.”